O Tecelão da trilogia fantástica The Fionavar Tapestry

The Fionavar Tapestry

É meu ofício enquanto tecelão do Ao Sugo trazer a vocês uma obra ímpar do gênero da Fantasia. Acabei de retornar do mundo fantástico de Fionavar nos últimos meses e, antes de conseguir seguir viagem para outros tantos belos universos, sinto que preciso dizer algo a respeito das terras de lá. Tal qual um fio solto na Grande Tecedura, The Fionavar Tapestry do canadense Guy Gavriel Kay causou forte impressão nesta pobre alma que tem esse péssimo hábito de sonhar.

Trilogia selecionada para fazer parte do meu Goodreads Reading Challenge 2013, confesso que foi uma das melhores leituras que fiz no ano. Parte dos leitores do Ao Sugo já conhecem o seu autor mesmo sem saber. O ex-advogado Guy Gavriel Kay auxiliou Christopher Tolkien na árdua tarefa de compilar o Silmarillion, um dos melhores livros de Fantasia já escritos e, na minha opinião, o melhor de J.R.R. Tolkien. Findado o trabalho e como uma bela homenagem aos Tolkien, Kay escreveu a trilogia The Fionavar Tapestry, retraçando de modo similar o esforço criativo do pai da Terra-Média em criar a mitologia das mitologias.

Guy Kay é considerado um dos maiores expoentes do gênero da Fantasia da década de 1980, especialmente por “revitalizar” o gênero sem ser uma mera cópia de O Senhor dos Anéis, algo bastante comum no mercado editorial desde o lançamento da farofada de Frodo Bolseiro e comitiva. É óbvio que as comparações são inevitáveis entre Fionavar e O Senhor dos Anéis (é uma homenagem, oras), contudo, temos em mãos algo extremamente original e que, muito infelizmente, não chegou neste Brazil Guaranil.

The Fionavar Tapestry

Fionavar consiste em The Summer Tree (1984), The Wandering Fire (1986) e The Darkest Road (1986), ganhando o prêmio Aurora em 1987. A trilogia fortaleceu as bases do que conheceríamos depois como High Fantasy e Epic Fantasy, ou seja, histórias lendárias com personagens épicos que, assim como o pobre Frodo, geralmente envolvem salvar o mundo de uma desgraça sem precedentes. É, ok, maniqueísmo também faz parte do pacote, além de objetivos quase inalcançáveis como jogar o Um Anel nas Fendas da Perdição em pleno território inimigo. Sozinho. E quase pelado.

Longe de Hobbits de pés peludos, em Fionavar os personagens principais são universitários da Universidade de Toronto, recrutados por um mago para uma visitinha ao mundo de Fionavar. Kevin Laine, Paul Schafer, Dave Martyniuk, Kimberly Ford e Jennifer Lowell são convidados por Loren Silvercloak e o anão Matt Sören, sua fonte de magia (aham, os magos em Fionavar sugam a energia vital de outras pessoas), para fazerem parte de uma comemoração no Reino de Brennin. Depois de atravessar um portal mágico, temos cinco jovens que são enveredados em uma jornada épica contra Rakoth Maugrim, o mal encarnado que estava enterrado debaixo de uma montanha por eras sem fim.

Sim, temos dentro da homenagem personagens que lembram até demais os nossos camaradas da Terra-Média. Loren Silvercloak é evidentemente o Gandalf de Fionavar (cuja referência é direta até no nome, “Capa Prateada”, buscando compreender Gandalf, O Cinzento, e Gandalf, O Branco). Matt Sören é um rei anão exilado, nos remetendo ao Thorin Escudo-de-Carvalho. Já Rakoth Maugrim lembra por demais Sauron… Mas as comparações imediatas param por aí.

Guy Gavriel Kay

Guy Kay combina com maestria mitologia céltica, nórdica e lendas inglesas e francesas na composição de Fionavar, oferecendo personagens sólidos e um universo impressionantemente crível. Essa combinação de mitologias e a incorporação de elementos tolkienianos na narrativa é possível porque Fionavar é o primeiro mundo criado, sendo os demais um reflexo ou espelho deste. A trilogia se deita na ideia de que existe a Grande Tecedura, cujos criadores, os Tecelões, criam vários universos espelhados ao longo do tempo, conectando por outro lado todas as mitologias. Tais quais os nós de uma trama, são nesses pontos de convergência que as mitologias se tocam e heróis e mitos são partilhados por vários povos. Essa leitura transcende a proposição de Roger Zelany em seus livros da série Amber e, ao mesmo tempo, propõe uma leitura mais elegante e sofisticada do que aquele mimimi do Joseph Campbell do Herói de Mil Faces e afins.

Há quem coloque a trilogia The Fionavar Tapestry no ról dos livros de lendas arturianas, dada a aparição de Arthur, Lancelot e Guinevere na narrativa. Todos dotados de papéis essenciais na nossa aventura, são incorporados na história em personagens ricos e verossímeis, afinal, são produtos diretos de nós na trama que corresponderiam a mitos universais. Já Rakoth Maugrim é caracterizado como Loki em sua tentativa de promover o Fim do Mundo em sua versão do Ragnarok, sem contar a aparição de deuses da mitologia céltica aqui e acolá. Longe de ser mais do mesmo, Kay brinca com essas infinitas possibilidades mitológicas para elaborar a sua própria mitologia, algo que por si só já merece a leitura dos livros.

The Fionavar Tapestry foi belamente ilustrado por Martin Springett e, ao contrário dos outros livros de Guy Kay, não têm uma escrita tão rebuscada ou floreada, sendo bastante acessível para aqueles que estão começando a ler em inglês. Sim, inglês. Apesar de publicado em vários países, não ganhamos a nossa edição em português (o que me deixa deveras curioso quanto à tradução dos topônimos). Infelizmente a trilogia não conta com exemplares eletrônicos, ou seja, aqueles que estiverem interessados deverão importar do exterior as edições impressas mas, garanto, o trabalhão vale a pena.

O autor sabe como escrever bem e cativar o leitor, além de não ter medo em matar personagens principais ou alterar a trama de maneiras bruscas. Ao contrário de tantos títulos do gênero que se acovardam no susto pelo susto e em tramas duvidosas que fazem do leitor um refém, Fionavar tem claramente um começo, meio e fim. Podemos acompanhar o crescimento dos personagens principais que, antes meros universitários, são envolvidos na trama épica, com papéis de extrema responsabilidade. Para os amantes de Fantasia, é uma leitura obrigatória, justamente por traçar com maestria o caminho para tantos outros livros que conhecemos hoje.

Victor Hugo Kebbe, o Tecelão

Leia mais:

Conheça o site Bright Weavings, minha sugestão para aqueles que querem conhecer mais os trabalhos de Guy Kay

11 comentários sobre “O Tecelão da trilogia fantástica The Fionavar Tapestry

  1. É uma pena que esses escritos “mais antigos” não chegaram até aqui… Enquanto isso, nós ficamos a mercê de obras de fantasias mais frágeis, que fazem referencia a obras desconhecidas (no Brasil),são louvadas até o extremo.
    Acho importante conhecer o que se passou, para assim poder visualizar esses “best sellers” que, as vezes, não trazem nada de novo, mas sim repetem o que não conhecemos…

    1. Falou tudo. Essa trilogia e os próprios escritos da Ursula K.LeGuin deveriam ser urgentemente recuperados, pois a cada dia que passa o mercado fica cada vez mais saturado de livros de gostos duvidoso. Como uma vez escrevi no Facebook, temos essa explosão de autores que jogaram RPG e leram um ou outro gibi se sentindo autorizados a escrever fantasia, sem conhecer as origens da coisa toda…

  2. Concordo plenamente, efgalli. Uma pena mesmo. Aqui as obras de fantasia poderiam ter sido publicadas em uma ordem, vamos dizer, cronológica (não sei se me fiz entender) para que os leitores pudessem perceber a progressão dos diversos estilos.

    1. Cassy, entendi perfeitamente a proposta. Gostaria muito que fosse assim, contudo… O que tenho feito é ler tudo na ordem, em inglês mesmo, para depois ler as produções mais atuais. Foi só nos últimos tempos que finalmente consegui ler O Espadachim de Carvão, de Affonso Solano, depois de ter lido os clássicos antes. Lá em Ithildin estou tentando colocar os vários estilos para que nossos leitores consigam pelo menos comparar as diferenças, nuances e temáticas antes de ler, sem dar muitos spoilers.

      PS.: Até sexta-feira o Ithildin ganhará uma nova coluna, só sobre Neil Gaiman e Fantasia Urbana, então novas coisas virão…

      Victor Hugo

      1. Entendo perfeitamente. Comigo também é assim. No meu blog eu tento mostrar qual autor publicou (ou escreveu) o que primeiro e serviu de base para os demais. É difícil hehe, mas a gente chega lá e ajuda o pessoal a conhecer esse universo lindo que é a fantasia.

        Vou ficar de olho na nova coluna. Estou com Dresden Files para ler aqui e adoro o Neil Gaiman (e olha que só li um livro dele haha). Abraços.

      2. Vou colocar o seu blog na nossa lista de Sobremesas, Cassy, rs. Sobre o Dresden Files, o que tá achando do Jim Butcher?

        Abração,

        Victor Hugo

      3. Ainda não comecei a ler a série do Jim em si 😛 Mas li um conto ambientado na série e adorei o estilo. Acho que vou gostar de Dresden Files.

      4. Um leitor nosso curte bastante. O Jim Butcher é bem novinho, começou a escrever Dresden Files pra desafiar uma professora que ele tinha no colegial que achava que ele era incapaz, rs. No fim deu tão certo que, bem…

  3. Eu acho que em alguns casos a referencia em si não está diretamente relacionada aos escritos mais antigos, por isso, acabamos lendo uma “ideia nova” sendo que ela já foi explorada anteriormente, com muito mais propriedade.
    Concordo com o Victor em relação a explosão de autores que jogaram RPG e acham que sabem tudo de fantasia, e não conhecem os principais autores.
    Fico pensando nos quadrinhos e livros do Neil Gaiman que deixam claro suas referencias, instigando o leitor a buscar essas obras.
    Acho que precisamos sempre nos dedicar a leitura da base desses autores para, assim, poder ver se sua obra é algo interessante ou não.
    Ainda bem que, e por isso leio o Ao Sugo (sem ser puxa-saco), por apresentar essas referencias da Fantasia de uma forma crítica, e não pautado em achismos de TV.

  4. Acredite se quiser, consegui a Trilogia em português de Portugal em um sebo, pela bagatela de 50 reais!!!! Li ano passado e adorei, o Guy Gavriel Kay se tornou um dos meus escritores preferidos, ainda mais depois de ler o belíssimo Leões de Al-Rassan, que figura entre meus livros favoritos. O que gosto dele é a profundidade dos personagens, a grande carga emocional que cada um tem e o modo como o Guy passa isso ao leitor. Como esquecer do que acontece na Árvore do Verão? Ou todo o amadurecimento dos personagens? E tudo isso sem precisar ser apelativo ou adquirir um tom novelesco. O fato é que ele é um escritor sem igual e estou muito ansioso pela publicação de Tigana.

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