A mente fantástica de J.R.R. Tolkien

Dois de setembro de 1973

Bornemouth, condado de Dorset, Inglaterra: o linguista, acadêmico e autor de sucesso J.R.R. Tolkien falece aos oitenta e um anos de idade. Conhecido por sua grande trilogia de mais de 500 mil palavras, O Senhor dos Anéis, Tolkien tornou-se um ídolo principalmente nos anos 1960, graças a sua obra que descrevia a guerra entre o bem e o mal definitivo.

Ao ler um obituário inglês há aproximadamente 40 anos, seria possível deparar-se com palavras muito próximas das apresentadas acima. A cinzenta manhã daquele domingo trouxe uma tempestade desanimadora para os fãs do escritor britânico, que aprenderam a amar a literatura fantástica de um mestre da filologia de forma férrea e constante.

Nascido em Bloemfontein, na África do Sul, ao terceiro de janeiro de 1892 e radicado inglês, era filho do banqueiro Arthur Tolkien e sua esposa, Mabel. J.R.R. Tolkien mal conheceu seu pai, que contraiu febre reumática e morreu em 1896. Isso foi pouco antes de a família ir para a Inglaterra para uma temporada (para cuidar da saúde de Mabel e seus filhos). Com a morte do pai na África do Sul (antes de se juntar à família), os Tolkien ficaram na Inglaterra, onde passaram dificuldades financeiras.

Muito da sobrevivência era graças à ajuda da família de Mabel. Contudo, em 1900, ela converteu-se ao catolicismo (antes era da Igreja Anglicana) e isso fez com que sua própria família cortasse o auxílio em dinheiro que mantinha íntegra a família Tolkien. No mesmo ano, Mabel faleceu vítima de diabetes, que na época não possuía tratamento. O próprio John considerou a morte da mãe um sacrifício, e tornou-se, ele mesmo, católico fervoroso desde então.

A criação de Tolkien e seu irmão passara a ser do padre jesuíta Francis Morgan. E foi ali, no alojamento, que ele viria a conhecer, em 1908, Edith Bratt, três anos mais velha que ele. E os dois começaram a namorar secretamente. Só que, quando o Padre Morgan descobriu, proibiu os dois de se encontrarem até que Tolkien completasse 21 anos. Duras penas, mas na noite em que alcançou a maioridade, Tolkien escreveu a Edith e convenceu-a a casar-se com ele. Juntos, viveriam muito felizes e teriam quatro filhos: John Francis, Michael, Christopher e Priscilla. Contudo, esse senhor gentil e de olhos azuis, roupas de lã e que adora caminhadas e um bom cachimbo ficou conhecido por suas histórias fantásticas que, até hoje, povoam o imaginário de uma legião de fanáticos.

Durante sua vida, Tolkien tornou-se uma autoridade na língua inglesa, anglo-saxão e filologia e, além de fazer parte do círculo acadêmico, também estava envolvido entre os criativos fantásticos da época. Fazia parte, inclusive, de um grupo informal de escritores de fantasia chamado Inklings, cujos membros reuniam-se em cafés para discutir as obras um do outro. Mais um membro deste grupo era ninguém menos que C.S. Lewis, autor de As Crônicas de Nárnia.

O reconhecimento à obra tolkieniana foi muito maior na década de 1960, depois de O Senhor dos Anéis tornar-se um sucesso muito bem estabelecido. Até que, em 1972, ele receberia a Ordem do Império Britânico pela Rainha Elizabeth e se tornaria Sir John Ronald Reuel Tolkien.

Em um buraco na imaginação, havia um hobbit. E vários outros. E elfos, anões, dragões e mundos variados…

“Sempre que escrevo, começo com um nome e termino com uma história”, disse, certa vez, o Professor Tolkien em uma entrevista à rádio BBC. No caso dele, isso não poderia ser menos verdadeiro. O universo criado por J.R.R. Tolkien possui um elemento que, em não poucos casos, é justamente um ponto fraco em mundos fantásticos: a consistência. A Terra-média (e, mais precisamente, Arda, que é realmente todo o mundo no sentido imaginativo tolkieniano) é um emaranhado complexo de culturas, com línguas, arquitetura, arquétipos e histórias de variados povos. Até mesmo as formações geológicas fazem sentido.

Para alcançar o grau de complexidade apresentado em seu universo, Tolkien começou pela criação de línguas próprias. Filólogo e professor em Oxford de 1925 a 1959 e, ultimamente, professor em Merton de Língua e Literatura Inglesa, Tolkien entendia muito bem a estrutura de uma língua e o assunto era uma de suas paixões desde muito novo. Lentamente, o jovem começou a criação de suas línguas e a escolher diversos nomes. A influência de toda esta criação vinha do anglo-saxão, do finlandês e do galês (um dos idiomas modernos favoritos do homem) – bases dos idiomas élficos que inventou.

Como jovem oficial do exército britânico, Tolkien chegou a ser enviado para a França na Primeira Guerra. Viu muitos de seus amigos tombarem ante infantarias alemãs e conseguiu ver, em primeira mão, como era o horror da guerra – não é por menos que suas histórias possuem o mote do bem contra o mal e a guerra como pano de fundo. Passou quatro meses no front, em Somme, até pegar febre de trincheira e ser enviado de volta para a Inglaterra. Enquanto se recuperava (e lamentava muitos amigos de universidade que nunca mais veria), Tolkien começou a escrever o que seria o grande épico mitológico lançado somente após a sua morte, O Silmarillion. Tolkien dizia que viveu em um período conturbado, e viu muita coisa acontecer.

A paixão da mitologia mundial que Tolkien criava era, portanto, mais de duas décadas mais jovem que a concepção do livro que o colocou em evidência, O Hobbit, que seria lançado em 1937 e muito bem recebido pelo público. O sucesso fez com que a editora encomendasse de Tolkien mais histórias com hobbits e, mesmo com um material extenso sobre a ambientação (e que compunha os rascunhos do Silmarillion), o trabalho foi rejeitado por não possuir a criatura que caiu no gosto popular. Foi aí que Tolkien iniciou a confecção de O Senhor dos Anéis, que levou 14 anos para ficar pronto e foi publicado, pela primeira vez, em julho de 1954. Até hoje é um dos livros mais lidos do mundo e possui fãs esparramados por todos os continentes.

Mitologia das Mitologias

Mesmo durante o sucesso e a concepção de O Hobbit e O Senhor dos Anéis, Tolkien nunca parou de trabalhar n’O Silmarillion. Extremamente perfeccionista e detalhista, o Professor escreveu várias versões de uma mesma história, por exemplo, e raramente decidia-se por uma versão final.

Sendo um acadêmico, Tolkien tratava seu trabalho de maneira analítica e, às vezes, até mesmo um pouco distante. Ele escreveu estudos sobre sua própria obra, em que analisava aspectos como a origem dos orcs (cuja versão definitiva ele mesmo – Tolkien – nunca decidiu) ou a discussão do crescimento de Sauron na Segunda Era do Sol, em proporção a Melkor/Morgoth na Primeira Era.

Era por meio desse tipo de comportamento que J.R.R. Tolkien dava consistência à sua criação – ou subcriação, como ele denominava o ofício dos escritores de fantasia. Em não poucas vezes, o escritor foi confrontado com a questão de se Arda seria a própria Terra, mas em outra época. Tolkien afirmava, como toda boa mente inventiva, que não: “Mas em uma fase diferente de imaginação, sim”, afirmou à BBC em uma entrevista de 1971.

Essa “fase diferente de imaginação” seria, nada menos, que o conceito que Tolkien queria empregar em sua obra de uma mitologia das mitologias. Isso quer dizer que os acontecimentos narrados em sua obra poderiam ser um grande apanhado de inspiração das mitologias da própria Terra, o mundo real em que vivemos. O resultado é uma imensa homenagem à psique e imaginação da humanidade, assim como a complexidade do pensamento filosófico e filológico do ser humano. Uma via dupla, inclusive, já que, para os mais românticos, é possível imaginar Arda e sua mitologia como o tempo ou era imaginativa que deu origem a todas as mitologias subsequentes.

Legado

Tolkien faleceu antes de conseguir lançar o Silmarillion ou completar todas as nuances de sua obra maior, que é justamente o que está às voltas da celebridade O Senhor dos Anéis. Para não deixar os fãs na mão, Tolkien deixou seu filho Christopher (que, entre outras coisas, é o autor do mapa da Terra-média) como editor póstumo. A Christopher, coube o trabalho de compilar todo o extenso material que o pai produzira durante a vida toda e publicar, de forma lógica e bem enredada, O Silmarillion.

A primeira publicação do agregado mitopoético tolkieniano foi em 1977, e mais uma vez os fãs do estilo narrativo de Tolkien e seu personagem principal – a Terra-média – puderam deleitar-se com contos inspirados nos Eddas heroicos, poesias anglo-saxãs e histórias celtas, entre muitos outros. A criação do mundo, o início dos povos de Arda, as casas élficas, grande contos épicos… Tudo isso tem seu lugar em O Silmarillion.

Contudo, nem de perto o que Tolkien produziu pode estar em O Silmarillion; afinal, há histórias incompletas e versões diferentes para os mesmos contos. Seria um livro de 10 mil páginas. Estes outros pergaminhos se transformaram em livros como Os Contos Inacabados, Os Filhos de Húrin, a extensa série History of Middle-earth (com 12 volumes e nunca lançada no Brasil) e As Cartas de JRR Tolkien, em que o autor responde questionamentos de fãs, editores, explica sua obra, fala da possiblidade de filmar O Senhor dos Anéis e muitos outros temas.

A obra tolkieniana por muitas vezes é taxada de escapista e infantil, quando na realidade é apenas um intento perene de se contar uma história, e nada mais. Durante muitos anos, Tolkien foi questionado de alegorias presentes em sua obra, mas o autor sempre rechaçou tais acusações com asco: “Eu repugno a alegoria sempre que lhe sinto o cheiro”, disse à BBC.

O que ele nunca negou, porém, foi a aplicabilidade de sua obra. Como toda boa história em que o público identifica-se com o enredo, a obra de Tolkien possui sim muitos valores que podem ser incorporados nos aspectos mais diferentes da vida de cada um. A moral, a ética, devoção, amizade e amor são apenas alguns exemplos da obra desse que é considerado, por muitos, o maior autor de literatura fantástica que já esteve entre nós. E mesmo que o leitor seja resistente a tais moralidades, não há como negar: Tolkien pode nos levar a outro mundo.

Marcus Vinicius Pilleggi, de Bolsão, aguardando uma festa inesperada

Imagens: Arte de John Howe, Alan Lee e Ted Nasmith

Mapa da Terra-Média. Clique para ampliar

5 comentários sobre “A mente fantástica de J.R.R. Tolkien

  1. Lindo! Lindo! Lindo!
    Nunca vi um texto assim no Ao Sugo, isso só mostra que o site está cada vez melhor 😉
    Parabéns, amor, por escrever algo tão significativo sobre um dos nossos autores preferidos! 🙂

    Te amo, seu nerd xD

  2. Assisti recentemente no History Channel (um programa bom em meio a tantos programas chatos) que falava sobre a vida de Tolkien e sobre as inspirações para O Senhor dos Aneis. Fiquei surpresa ao saber que ele lutou na Primeira Guerra Mundial e que o que ele viu no front serviu para descrever várias partes da obra e o terror vivido por Frodo.

    Eu gostei muito de O Senhor dos Aneis, mas foi um parto ler O Silmarillion, por mais encantadora que seja a obra. O estilo da leitura é muito truncado, parece que você lê aos tropeços. Ainda assim acho que vale à pena ler para saber como surgiu a Terra Média.

    Ótimo texto, abraço! 😀

  3. Texto sensacional! Uma abordagem bem completa do tema.
    Já li O Senhor dos Anéis, O Hobbit e O Silmarillion, logo que ro ler os outros dois que estão aguardando ali na estante, Os Filhos de Hurín e Contos Inacabados.

    Se quiser fazer uma visita ao meu blog, o endereço é o seguinte: http://homoliteratus.com/

  4. Nunca se deve tomar as palavras de um autor pelo seu valor de face. Não é pelo fato de que costumam mentir, mas pelo fato de que podem não ter o controle consciente de seu processo criativo. Tomemos como exemplo o caso da alegoria. Há alegorias e seres alegóricos ao longo do “Senhor dos Anéis”. Ou alguém aqui vai convencer-me de que o olho sem pálpebra não é uma imagem alegórica? Ou ainda: é possível crer que o Silmarillion não seja uma alegoria cristã? E mesmo as referências literárias que são mobilizadas ao longo do Senhor dos Anéis: muitas delas foram retiradas de obras medievais — todas, sem exceção, alegóricas. Só como exemplo, cito Lórien, um “locus amenus” idêntico ao “Bower of Bliss” de Faerie Queene… Creio que AoSugo deveria levar hipótese das alegorias e brindar os seus leitores com um texto sobre isso.

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