E assim vocês observam uma grande estátua com o símbolo de Lathander diante de vocês. A imagem finalmente dava algum sentido àquelas poderosas ruínas que vocês adentraram na noite anterior. Um templo ou um monastério dedicado ao Senhor do Amanhecer apontava a presença da civilização naqueles ermos distantes no seio de Faerûn. Abençoado pela imagem, o sacerdote da comitiva imediatamente percebeu as emanações radiantes do divino e fez uma reverência. Depois de tantas agruras que aquela sociedade enfrentara assim que colocaram os pés para fora de casa, tudo estava amainado, a desesperança diminuída e a tristeza aplacada. Aquele tinha sido um bom dia.

Essa é uma das sempre possíveis cenas de uma partida de Dungeons & Dragons, especialmente quando a aventura é localizada no cenário dos Reinos Esquecidos e no continente mágico de Faerûn. O RPG mais famoso do mundo teve e ainda tem a capacidade de trazer, naquele interstício de tempo que chamamos de sessão, histórias fantásticas contadas de modo compartilhado. Depois do dia atribulado e das dezenas de contas a pagar, esses momentos de escape são amiúde inesquecíveis.

A cena aludida no início deste texto ilustra o poder da imaginação, quando o personagem de um dos jogadores, um Sacerdote, se defronta com a imagem de uma das mais importantes divindades do panteão faerûniano. Uma estrada banhada pelos raios de Sol foi o que o clérigo do grupo viu, o símbolo de Amaunator, o Deus da Fertilidade, do Nascimento e da Renovação. E deste lampejo que teve no meio daquele templo, ele soube que não estava só, pois sua divindade protetora estava lá, de alguma forma. Nenhuma palavra foi trocada com o deus, estando muito enevoado pela esperança, pela fé e, também, pela interpretação.

Contudo, nem sempre precisa ser assim. E se o nosso sacerdote fosse, por alguma misteriosa razão, confrontado pelo próprio Amaunator? O que ele diria? Se prostraria diante dos pés da divindade? Cairia num torpor catártico? Ou gaguejaria sem parar diante daquele encontro? Não é todo dia que esse tipo de coisa acontece em Dungeons & Dragons, e olha que estou considerando quase todos os cenários de campanha existentes. Bem, tudo muda quando jogamos Planescape.

Criado em 1994 por David “Zeb” Cook, Planescape se aproveitava de várias pistas já presentes em um suplemento clássico de D&D, o Manual dos Planos, de 1987. Os cenários de campanha existentes já estavam em tal grau de desenvolvimento que continham não só a descrição das paisagens, história e personagens cativantes (alguns nem tanto) que habitavam aquelas terras, como também esboçavam cosmologias inteiras. Saber para onde iremos depois que passamos para as Terras sem Sol sempre foi a maior aventura do pensamento humano e, portanto, por que não o faríamos no nosso hobby favorito?

Planescape permitia que nossos personagens das sessões de Dungeons & Dragons pudessem viajar entre os vários planos de existência e, muito frequentemente, encontrar todos os seres que habitam essas mesmas cosmologias. Comer um lanche com uma divindade ou discutir política local com uma entidade infernal deixava de ser surreal para se entranhar na textura das histórias, ampliando assim o leque de possibilidades narrativas e imaginativas dos roleplaying games.

O principal hub dessa maluquice toda – e o que diferencia Planescape do antigo Manual dos Planos de 1987 – é o surgimento da cidade de Sigil, a Cidade das Portas, a metrópole capaz de conectar todos os planos possíveis. Expressão máxima do multiculturalismo de 1990, Sigil possuía uma atmosfera única e intensamente cosmopolita, com os personagens dos jogadores e várias criaturas dos mais diferentes planos coabitando aquele lugar de arquitetura impossível. A metrópole das metrópoles estava impressa dentro de uma forma toroidal, ou seja, imagine um pneu, com a cidade disposta do lado de dentro. Contudo, apesar de reunir coisas boas e más debaixo do mesmo teto, lá estava a governante de Sigil, a Senhora da Dor, uma entidade misteriosa e que conseguia botar ordem na coisa toda.

O cenário urbano de Sigil trouxe um novo fôlego aos cenários de campanha de Dungeons & Dragons existentes até então. Seguindo o sucesso e os moldes de Vampiro – A Máscara, Sigil também tinha seus clãs, agora Facções, cada uma relacionada com diferentes perspectivas políticas, éticas e, consequentemente, morais. Nunca os Alinhamentos dos personagens fizeram tanto sentido no jogo, pois o comportamento deste ou daquele personagem poderia ocasionar em benesses ou atrocidades fenomenais.

Pois bem, falei tudo no passado, como se Planescape não existisse mais. Por um lado, não existe. Toda a linha foi abandonada com o fim da segunda edição do Advanced Dungeons & Dragons. Criado em pleno “começo do fim” da bolha editorial dos RPGs da década de 1990, Planescape talvez tenha sido uma aventura natimorta ou talvez muito à frente do seu tempo. Com o lançamento das edições subsequentes de Dungeons & Dragons, Planescape infelizmente não conheceu – ainda – o século XXI. Todavia, todos os títulos lançados de Planescape ainda continuam disponíveis para venda no formato digital, além de ainda manter vários e ardorosos fãs pelo mundo todo, eu incluso. Se, enquanto jogador de Dungeons & Dragons – ou de qualquer outro sistema –, estiver disposto/a para uma aventura surrealmente real, cosmopolita e adulta, é chegada a hora.

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