Devidamente apresentado o nosso herói demoníaco há muito tempo, numa galáxia muito, muito distante, devo dizer que as aventuras de Hellboy continuam no Ao Sugo, obrigado. Para começar, ou melhor, continuar, vale a pena lembrar que o Vermelhão rapidamente se tornou uma figura über conhecida no mundo nerd, dado não só o magnetismo da Besta do Apocalipse para conosco como também o trabalho primoroso de Mike Mignola na produção desta HQ. Pelo título ser underground, Cult e quase até mesmo independente, Mignola pôde garantir a continuidade das aventuras do Vermelhão ao assumir o roteiro de todas as edições lançadas e isso, ah, e isso, meu filho, vale muito.

Alguém aqui já teve a decência de ler Drácula, de Bram Stoker? Ou ao menos ter visto as adaptações cinematográficas de F.W. Murnau ou F.F. Copolla? Pois bem, recuperem aquela ambientação sórdida com aquela neblina insuportável, misturem um pouco com lendas da Romênia, um pouco de H.P. Lovecraft e pronto, temos em mãos a segunda aventura de Hellboy: O Despertar do Demônio!

Lançado no Brasil pela Mythos Editora em 3 edições, O Despertar do Demônio pode ser entendido como continuação direta de Sementes da Destruição, agora, trazendo mais personalidades lendárias do mundo oculto. Bastante diferente do primeiro filme de Guillermo Del Toro (que vomita de uma só vez todos os detalhes de que Hellboy é A Besta do Apocalipse, ao contrário das histórias em quadrinhos) O Despertar do Demônio consegue mesclar com bastante sucesso o mito do vampiro, mitologia grega e todo aquele furdunço que ocorreu no arco anterior com os nazistas.

Para aqueles que vergonhosamente não leram o artigo anterior, os nazistas Klaus Werner Von Krupt, Leopold Kurtz, Ilsa Haupstein e Dr. Karl Ruprect Kroenen se uniram para trazer uma criatura extra-dimensional para vencer a guerra pelo Eixo. O então chamado Projeto Ragnarok trouxe Hellboy para este mundo, mas os nazistas não sabiam que o Vermelhão acabaria lutando pelo lado Aliado… Pois bem, Hellboy meteu o prego em todo mundo e salvou o planeta mais uma vez, ok… mas você se lembra que nas últimas 3 páginas de Sementes da Destruição alguém libertou essa galera nazista de um castelo macabro na Noruega? Tcharans, e assim começa O Despertar do Demônio!

Liderados pela maluca Ilsa Hausptein, os nazistas procuram pela ajuda do vampiro romeno Vladimir Giurescu, um vampirão no melhor estilo Vlad “Tepes” Tedescu e que tantas lembranças deixou ao ser chamado de Drácula. Giuresco foi abençoado (ou amaldiçoado, vocês que se entendam) pela deusa grega da magia e da noite Hecatae, concedendo-lhe além de poderes sobrenaturais, a capacidade de sobreviver à morte. Imortal, Giurescu lutou nas Guerras Napoleônicas e quase integrou o exército do Eixo com seus soldados vampiros.

Argumento besta? Espalhafatoso? “Espetaculoso”? Pelo contrário. O Despertar do Demônio consegue reunir uma série de teorias até então muito distantes que, como diz Mignola, enriqueceria o mito do Drácula na Romênia. Como ele comentou na animação Hellboy: Blood and Iron, existem alguns escritos obscuros que ligam o fenômeno do vampiro aos poderes malévolos da deusa Hecatae, amaldiçoada pelo Rei Toth da Hiperbórea a viver na escuridão. Vale lembrar que a idéia do vampiro é presente em vários povos e mesmo na mitologia romena existe vários espíritos que são “espécies” de vampiro, mas ninguém tinha parado para trazer essa associação entre mitologias tão interessantes, a romena e a grega, para o mundo da cultura pop como conhecemos hoje.

Com o roteiro e arte de Mike Mignola, a equipe do Bureau de Pesquisa de Defesa Paranormal se embrenha na Transilvânia em busca da toca de Giurescu, sem saber qual é exatamente o castelo do vampiro. O grupo todo se divide e Hellboy ganha, óbvio, a tarefa ingrata de lidar sozinho com nosso camarada dentuço. Assim o BPDP viaja por toda a Romênia em castelos absurdamente assustadores, surpreendentemente coloridos por James Sinclair e Dave Stewart, merecendo a arte em si um comentário à parte.

Mike Mignola consegue realizar no nanquim um feito quase insuperável. Fugindo das hachuras porcas típicas dos quadrinhos da década de 1980, das malditas linhas paralelas de Jim Lee na década seguinte e da coloração/sombreamento computadorizado de hoje em dia, Mignola contrasta de maneira bastante expressiva o claro e escuro, sendo reconhecido por Alan Moore como o amálgama do expressionismo alemão com Jack Kirby.

Para aqueles que tiveram a experiência de ver um trabalho de Mignola sem a coloração, estes sabem que é uma experiência sem precedentes, sendo um dos raros momentos em que você se pergunta “mas como – diabos – ele conseguiu fazer isso usando só preto e branco?”. Seus desenhos têm um traço forte, ganhando uma profundidade ainda mais sombria com a coloração, feita habilmente por Sinclair e Stewart. Nada da porcaria do dégradé e da imitação barata de um espaço mais “tridimensional” nos quadrinhos: o Vermelhão não precisa dessa palhaçada. Além disso, pode prestar atenção: em todos os quadros em que aparece uma perspectiva, o herói ou personagem principal fica absurdamente abaixo da linha do horizonte, causando uma sensação de desconforto no leitor. Não é à toa que Mignola é um dos meus desenhistas prediletos (ou seja, mais posts do Ao Sugo sobre Hellboy, para o azar de todos vocês).

A encheção de lingüiça aqui tem evidentemente a sua função, a de não contar os desdobramentos ou o desenlace da trama para os nossos estimados leitores. Hellboy vale e muito o esforço da leitura (sobretudo da leitura e não ficar preso apenas nas adaptações para o cinema ou animações, que são absurdamente diferentes dos quadrinhos… É, se você não leu Hellboy porque acha que conhece o Vermelhão pelo cinema, você não sabe nada).

O Despertar do Demônio foi mais ou menos (e bem mais ou menos) adaptado para a animação juvenil Hellboy: Blood and Iron, trazendo agora não Giurescu como o dentução, mas Erzsebet Ondrushko como a vampirona com pacto com a deusa Hecatae. Erzsebet foi claramente baseada em Erzsebet Báthory (1560-1614), conhecida como a Condessa Drácula. Pois é, apesar do Vlad “Tepes” Tedescu levar quase toda a fama das maldades no mundo do terror como O Empalador, muito disso tudo se confunde com as próprias lendas em torno de Báthory. Integrante da corte imperial húngara, Báthory tinha como hobby matar mulheres e se banhar em seu sangue para se manter sempre jovem. Excelente tratamento de beleza… Mulher maluca é um perigo, diz o pessoal do Nerdcast

Ainda em O Despertar do Demônio nós temos a introdução do HomúnculoRoger”, uma criatura feita de sangue, barro e ossos por algum obscuro alquimista no século XVI, encontrada moribunda em um dos castelos da Romênia pelo BPDP. Nas paredes deste castelo é possível ver uma gravura dedicada à Deusa da Magia e da Noite, lógico, a Hecatae, deixando aí uma ponta solta que pode eventualmente ser recuperada por Mignola em trabalhos futuros. Roger terá um papel crucial para a saga de Hellboy, em especial na série A Mão Direita da Perdição, a ser comentada por aqui futuramente.

A animação ficou por conta de Tad Jones (ex-Disney e que já se envolveu com as animações da DC Comics), com a produção executiva de Mignola e Guillermo Del Toro. Com as vozes dos atores dos filmes, a animação em si peca pela qualidade gráfica e pelo ambiente/coloração que foge bastante do mundo dos quadrinhos. Não adianta me chamarem de purista ou então me aparecerem com o papinho furado de que são mídias e formatos diferentes: a animação japonesa já provou há muito que é possível transportar para uma animação 2D tudo quanto é tipo de coisa. Pior ainda saber que os norte-americanos souberam fazer isso muito bem em Gotham Knight e nada foi aproveitado para o universo de Hellboy.

Mignola tem muito claramente uma inspiração lovecraftiana em suas histórias e desenhos que, somada as suas extensas pesquisas em várias mitologias, dão um toque especial para tudo o que o nerd gosta de ler. O Despertar do Demônio é sem sombra de dúvida o meu arco preferido de Hellboy, pois consegue transpassar para os quadrinhos toda a ambientação soturna de mistério que envolve o livro de Bram Stoker, entre outros. Para quem não conseguiu as três edições da Mythos foi lançada no Brasil uma tal de “Edição Histórica” que reúne o arco em capa dura e papel de qualidade superior. Desculpa você não tem para não ler, portanto, te vira.

 Victor Hugo, usando um colar de alho

hellboy-wake-the-devilHellboy – O Despertar do Demônio (Wake the Devil) 1996

Roteiro e Arte – Mike Mignola

Cores – James Sinclair e Dave Stewart

Cores da Capa – Dave Stewart

Logotipo – Kevin Nowlan

Uma resposta para “Hellboy, Vol. 2: Wake the Devil”.

  1. Cara, eu simplesmente amei esse arco… até chegar no último capítulo. Sério, até ali tava achando um puta desenvolvimento legal, vários focos narrativos, uma dose legal de humor sutil e referências mitológicas, mas o final é muito fraquinho. A impressão que eu tive é que ele teve que terminar tudo abruptamente, por algum motivo qualquer. Até tem umas cenas vistosas, aquela revelação bacana, mas ele simplesmente força a história a terminar, meio que tirando todo peso e o sentido do que veio antes. Achei bem triste isso.

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