Entre as teletelas sócio-morais do mundo moderno, há uma obra (talvez a máxima de seu autor) que nunca perde a sua atualidade. Seguramente, 1984, de George Orwell, marcou fortemente sua influência no século 20, sendo que muitos outros livros, filmes ou quadrinhos foram, indubitavelmente, inspirados nesse que ainda permanece como uma das maiores críticas aos regimes totalitários e ao uso indevido de aparatos midiáticos e da linguagem. Para qualquer leitor assíduo de ficção, principalmente aquela que se calca em futuros em que impera a sociedade do controle, como THX de George Lucas ou V de Vingança de Alan Moore, 1984 é uma leitura obrigatória.
Sobre o autor
George Orwell nasceu em 1903, na Índia, filho de um alto funcionário da Marinha Britânica, sob o nome de Eric Arthur Blair. Desde cedo, demonstrou originalidade e repudiava a artificialidade do intelectualismo. Fez parte da Polícia Imperial Britânica e, depois de cinco anos nesse vínculo, renunciou à sua origem burguesa, sua fortuna e seu passado, mudando o próprio nome para George Orwell por volta de 1927; então, recomeçou a vida no proletariado. Dessa forma, sentiu o desgosto da desigualdade e da opressão.
É nessa situação que Orwell inicia sua produção literária. Pelo decorrer de sua vida, lutou em fronts revolucionários como na Guerra Civil Espanhola, e ao lado dos anarquistas socialistas na Catalunha. Isso fez com que ele se tornasse um socialista independente, já que lhe causou desgosto a estrutura rígida de controle dos Partidos Comunistas, fiéis aos ditos de Moscou; assim, Orwell se tornou um socialista revolucionário, mas também um grande anti-stalinista.
Com A Revolução dos Bichos, de 1945, Orwell criticou o regime soviético aburguesado e o totalitarismo. Contudo, seu grande ataque ao totalitarismo, em qualquer forma, veio com 1984, finalizado em 1948 e publicado em 1949. Com suas críticas violentas, demonstrou que a literatura política também é arte. Mas já basta. Vamos mergulhar na obra.
Sobre o enredo
A história se passa numa Inglaterra imaginária de Orwell, por volta do ano de 1984 (ninguém conhece a data com exatidão); essa Inglaterra, alcunhada de Pista de Pouso Número 1, faz parte da Oceania, um dos três superestados do mundo da obra; a Oceania tem esse nome por ser o único dos três superestados (Oceania, Eurásia e Lestásia) a possuir territórios em todos os oceanos (portanto, esqueça convenções e noções de continentes). Essa Oceania (e provavelmente os outros superestados também) vive sob o jugo totalitário do Partido (Ingsoc – Socialismo Inglês em Novilíngua, a língua criada pelo Partido como forma de controle), que tem como imagem maior o Grande Irmão, um rosto vigilante, mas que cuja existência real (como homem) é desconhecida se como verdadeira ou falsa.
O livro narra a história de Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade e membro do Partido Externo (que é a parcela menos poderosa do Partido). Dentro do Ministério da Verdade, a função de Winston é reescrever e alterar dados de registros passados, como jornais ou livros, sempre com o intuito e elevar a força e a credibilidade do Partido e do Grande Irmão. Existem quatro Grandes Ministérios: o Ministério da Verdade, responsável pela forja do passado e alterações, da manutenção da “verdade” de acordo com a conveniência do Partido; o Ministério da Paz, responsável pela guerra, o Ministério do Amor, responsável pelas torturas e lavagens cerebrais naqueles que cometiam a crimideia (crime de pensamento – de certo modo, idealistas e questionadores) e o Ministério da Fartura, que se encarregava do racionamento dos alimentícios. Não, os nomes dos Ministérios não são um exercício de ironia, e eu já falo o porquê.
O problema aparece quando Winston começa a questionar os atos do Partido e a maneira como ele se impõe, e a veracidade do Grande Irmão. Ele vai percebendo que as coisas provavelmente não foram sempre daquele jeito, e nem precisavam ser. Então, lentamente, Winston inicia seu caminho na direção de criminoso de pensamento, pois, em seu íntimo, começa a contrariar o ideário do Ingsoc. Com a manipulação dos registros, as provas são nada além da memória, mas mesmo ela é controlada pelo Partido por meio do duplipensar. É nessa palavra em Novilíngua que reside grande parte do poder do Partido. O duplipensar é um instrumento de alienação, já que, por ele, “recorda-se” da “nova verdade”, e se esquece da velha. Não é simplesmente crer que a “nova verdade” forjada é real, mas saber disso. Em verdade, é preciso duplipensar para duplipensar, esquecendo-se que se manipulou a realidade. Em outras palavras, esquecer que mentiu e acreditar nessa mentira, forçando a saber que é verdade desde o princípio e transformando-a, portanto, em verdade. Os próprios nomes dos Ministérios já são um exercício de duplipensar.
Toda a vigia dos cidadãos é feita pelas teletelas; elas permitem que o alto comando do Partido vigie seus “súditos” e os controle; seus horários, suas ações, sua vida. Winston tenta sempre esconder seu íntimo das teletelas, para que não seja tomado pela Polícia do Pensamento, responsável por deter a crimideia. O Partido não tem leis, mas aquele que pensa diferente é perigoso e deve ser eliminado. Esses “criminosos” eram capturados e acabavam por ser vaporizados. Simplesmente desapareciam do mundo, dos registros e da memória, tornando-se uma impessoa, um alguém que jamais existiu.
A história segue pela luta de Winston contra os limitantes do Partido; ele se identifica com a Fraternidade, que consiste em, teoricamente, revolucionários sob a liderança de uma personalidade odiada (graças ao poder do Partido): Emmanuel Goldstein; que, a grosso modo, é o oposto do Grande Irmão, sendo sua existência também não-comprovada. A Fraternidade, contudo, não é uma organização; a Fraternidade, como Winston descobre mais tarde, é uma idéia, e por isso que perdura; se fosse uma organização, haveria de corromper-se também. Vou parar por aqui pra não estragar qualquer surpresa.
Por que ler?
Um dos fatores mais interessantes do livro de Orwell é a demonstração da tênue linha que liga liberdade e linguagem; a linguagem surgiu, segundo alguns estudiosos, a partir do momento em que um desejou exercer o domínio sobre o outro. Esse é um dos temas majoritários de 1984, a Sociedade do Controle (aliás, é interessante notar que essa expressão remete não só à sociedade controlada, mas também que o controle é exercido por uma sociedade, uma mente coletiva, que transcende o indivíduo e resulta na sua força, o que mostra, dentro do livro, a invencibilidade do Partido).
É evidente que grande parte do controle do Ingsoc se dá pelo universo midiático; o controle sobre o que o cidadão comum ouve e assiste pelas teletelas e o absoluto domínio da mídia impressa, sejam jornais ou livros, garantem que o Partido tenha nas mãos o total comando manipulador da verdade, alterando registros e nomes, e eliminando qualquer prova da existência de algo ou alguém que não fosse condizente com suas intenções. Isso alude ao poder e ao perigo que a mídia pode exercer (e de fato exerce), ainda comprovado hoje em nosso mundo, como mais que meio informativo, meio de formação de opiniões. Engraçado notar, contudo, que nas mãos totalitárias do Partido no universo do livro, a mídia é usada para “desformar” (não deformar, “desformar” mesmo) opiniões, garantindo que elas não existam.
Como crítica ao totalitarismo, contudo, o livro tem muita aplicabilidade, já que, nos regimes totalitários, o Estado vigente controla a mídia, censurando-a ou corrompendo-a para seus próprios propósitos, na tentativa de legalizar seu regime. Isso se dá em qualquer regime totalitário. O fascismo e o nazismo, por exemplo, o comunismo russo (em que Stálin chegou a apagar registros dos bolcheviques e Lênin de muitas fotografias) e mesmo a ditadura Vargas no Brasil e o Regime Militar que se iniciou com o Golpe de 64.
Esse controle, entretanto, não se daria de forma tão poderosa sem a manipulação da linguagem. Afinal, no totalitarismo, os poderosos usam a linguagem e a subvertem em seu favor, metamorfoseando as palavras e dando-lhes novos significados. Manipulando, portanto, a sua verdade. É nisso que consiste a criação da Novilíngua; mais uma forma de padronização, é verdade, mas além disso, a criação da Novilíngua é o controle do próprio pensamento da população. A evolução dessa língua limita a liberdade. Quando pensamos, pensamos com a linguagem, se ela for limitada, também limitam-se os nossos pensamentos. Dessa forma, há um controle do próprio ato de pensar à medida que a liberdade de pensamento nos é exorcizada. Segundo o próprio Orwell diz em seu ensaio Politics and the English Language, presente no livro A Collection of Essays: “A linguagem política destina-se a fazer com que a mentira soe como verdade e o crime se torne respeitável, bem como a imprimir ao vento uma aparência de solidez”.
A perda de individualidade existe nesse controle da linguagem enquanto pensaríamos igual, por sermos igualmente limitados. Esse é o grande perigo da alienação: a padronização. O que ocorre não só hoje, como sempre; o zelo e a censura pelos bons costumes e pelo senso de correto (a moral) amputa a linguagem e, por conseguinte, o pensamento. No livro, o linguista Syme fala sobre isso quando discorre a respeito da evolução da Novilíngua, e que no futuro não será preciso pensar, que não haverá crime de pensamento (a crimideia) porque não haverá como expressar esse crime; as palavras da Novilíngua são um engodo e vitais à forja da verdade.
Obviamente, o cidadão comum do universo orwelliano de 1984 é profundamente alienado pelo duplipensar. Essa palavra em Novilíngua é, por seu significado, uma parte essencial da manipulação da verdade e da população. O duplipensar consiste em lembrar-se da nova verdade criada e esquecer a antiga; e esquecer da manipulação da verdade. Lembrando: é preciso duplipensar para duplipensar. Não só aceitar a mentira, mas entendê-la e saber que ela é verdade, tornando-a, pois, verdade. Sendo assim, pelo duplipensar, “o que não era passa a ser porque sempre foi”.
No livro, o protagonista Winston escreve, naquilo que é uma espécie de diário, a seguinte frase: “A liberdade é a liberdade de dizer que dois mais dois são quatro”. Fazendo uma interpretação dessa frase dentro do presente contexto, podemos dizer portanto que, alegoricamente, enquanto existir a linguagem que permita dizer que dois mais dois são quatro, tem-se liberdade. Consequentemente, não seremos mais livres quando estivermos em tamanho controle, com tamanha amputação da linguagem, que não poderemos dizer que dois mais dois são quatro. Nesse momento perderemos nossa liberdade, seja num recinto, entre um grupo ou no mundo todo.
Enfim, a obra de George Orwell, mesmo concluída em 1948 e ser um livro ficcional, continua atual, já que mostra os perigos da Sociedade de Controle e também da perda da linguagem, da sua manipulação enquanto forma de opressão; além de ser uma grande crítica ao totalitarismo. Por seu livro, o autor mostra a importância da preservação da memória e da linguagem. Afinal, “quem controla o passado, controla o futuro, e quem controla o presente, controla o passado”. Se não conhecermos nosso passado, não teremos futuro, pois não teremos controle sobre o nosso presente. E sem linguagem, não somos livres.
Marcus Vinicius Pilleggi
Nota: existe uma produção britânica, uma adaptação cinematográfica de 1984, que foi lançada em 1984, também, cabalisticamente. O filme é bom (apesar de um pouco cansativo em alguns momentos) mas, como era de se esperar, não é tão profundo quanto o livro. Assista ao filme, se quiser (não será um tempo jogado fora), mas evite ingresso em discussões acerca do universo orwelliano de 1984 sem ter lido o livro.
Que artigo elegante!
Ótimo artigo! Ótimo mesmo!
Preciso ler esse livro.
De facto, a linguagem são para o bem e para o mal, a fonte e o término da liberdade. Grande livro, merece ser lido por todos.
MUITO INTERESANTE!!!
ESTOU DESENVOLVENDO UM ETUDO ANALÍTICO SOBRE “A REVOLUÇÃO DOS BICHOS”, OUTRO CLÁSSICO RE ORWELL.
Vou apresentar uma aula sobre a Novilíngua sobre o olhar de Orwell.
A verdade é que nós não sabemos a verdade ,e sim que o poder quer que o noticiário nos digam… parabéns pelo estudo analítico!!!
Assaz interessante esse artigo,hhahahahhahaa,ilustrastes com matizes compativeis a essa anti utopia,1984!Leia-o esqueça paulo coelho e cury!
Vou ler com toda certeza =)
Ótima resenha!
Sempre me surpreendo com os textos aqui, esse não foi diferente.
=*
Ótimo texto!
Li 1984 pela primeira vez aos meus 12 anos, graças ao meu professor de Ensino Religioso, Claudinei. Era uma edição bem antiga, caindo aos pedaços, mas isso não diminuiu em nada toda a experiência que vivi ao ler este romance de George Orwell.
Já havia lido A Revolução dos Bichos, mas nunca tive a oportunidade de ler outros do Orwell. Meu fascínio pelo assunto é enorme, então as palavras dele foram um banho intelectual que tive. De um êxtase fantástico.
Não é preciso dizer que os livros dele expandiram minha mente de uma forma inacreditável. Que as idéias que foram jogadas a mim durante minhas leituras me fazem até hoje saber mais e mais sobre a história mundial.
Vou ser eternamente grata ao meu professor.
Darth Victor diz:
o q vc acha de 1984 e v de vingança, comparados
Marcus – Come fly with me – diz:
Acho a comparação indevida
Darth Victor diz:
pq
Marcus – Come fly with me – diz:
São narrativas imersas em sociedades de controle, apenas isso
Em 1984 o controle é mais profundo pq ele chega a ser imperceptível
a própria sociedade controla o indivíduo, não é simplesmente uma ditadura partidária como acontece no V de Vingança
No V de Vingança existe um controle em prol da segurança populacional. No 1984 não é SÓ isso
não existe algo no V de Vingança, por exemplo, como a ideia de manter uma guerra para dar a ilusão de paz (pq o fim da guerra seria a mudança da situação atual na qual acomodou-se a massa)
Darth Victor diz:
hum
Marcus – Come fly with me – diz:
No final das contas é que assim
V de Vingança utiliza algumas ideias que sem dúvida estão presentes no 1984
mas, de modo geral, é raso
não existe nenhum mártir em 1984
o Winston não é nenhum mártir. Na verdade ele não muda porra nenhuma
O V de Vingança o V deixa claro que é o comodismo que ajuda a manter o status quo, que movimentar a sociedade pode mudar a situação e talz.
Darth Victor diz:
a hannah arendt escreveu um livro sobre totalitarismo nazista e soviético, é tudo isso for real
Marcus – Come fly with me – diz:
Mas no 1984 a sociedade não quer mudar.
Darth Victor diz:
mostrando q foge de uma ditadura
e chega no controle do pensamento e bla bla bla
Marcus – Come fly with me – diz:
é justamente isso
Darth Victor diz:
por isso q eu disse, for real
Marcus – Come fly with me – diz:
Ditadura é um regime totalitário, mas o totalitarismo vai além da ditadura
Nossa, que brilhante
anota aí
Pilleggi 2010
Darth Victor diz:
ahah
Marcus – Come fly with me – diz:
o controle no 1984 é tão foda que um cara como o V não existiria
tenho que exatamente escrever uma redação comparando temas que emergem no v de vingança e no 1984, esse papo de vocês dois foi ótimo pra me ajudar a tirar um contraste dos dois, mas precisaria de algo que comparasse tambem, Marcus, o que voce acha que emerge nos dois?
Oi, Demetrius!
Acredito que os maiores temas entre as duas obras são o da sociedade do controle e da alienação da população – que leva justamente à sociedade do controle.
Quando falamos de sociedade do controle, geralmente as pessoas veem um pequeno grupo que exerce esse domínio; mas em 1984 e em V, embora exista a classe dominante, na forma do Partido em 1984 ou do Chanceler em V, é importante notar que a alienação da população e sua passividade faz com que ela mesma se controle. Imagine uma população que reprime a si mesma quando reprime seus membros que estão um pouco fora da curva, que pensam um pouco diferente. É mais ou menos a mesma coisa, e aí você pode expandir para grupos pequenos ou grandes, dentro de variadas esferas, como política, religião ou sócio-economia. As políticas de mercado da União Europeia, por exemplo, favorecem os países europeus que fazem parte da coalizão. Os que estão fora não gozam dos mesmo benefícios; é um exemplo, embora pequeno, de uma sociedade de controle.
A diferença essencial é que 1984 é mais preciso e mais bem trabalhado, e penetra até mesmo no âmbito da linguagem. Então, é um trabalho muito mais minucioso e completo. V de Vingança é uma maneira de introduzir o tema em um nicho de menor sutileza, mas nem por isso menos valioso, desde que suscite a discussão.
Muito bom esse artigo, eu vi o filme na minha faculdade e minhas ideias estavam confusas e este artigo me ajudou muito a entender.
Obrigada! EXCELENTE O ARTIGO, PARABÉNS!
Onde eu compro o livro, estou procurando e não acho nas livrarias online.
Republicou isso em aosugo.
Adorei a crítica! Está nos ajudando muito a dar continuidade ao trabalho que estamos montando e a pensar sobre a alienação e outros fatores que cercam a sociedade atual em que vivemos. Seria bom que todos pudessem abrir a mente e analisar sobre esses fatores e procurar uma melhoria para vivermos em um sistema que não seja tão manipulador.