Magistral, singular, notável! Não faltam qualidades aos luxuosos apartamentos e salões do Hotel Overlook, nas montanhas do Colorado. Ideal pra quem quer privacidade e isolamento, foi frequentado por quatro presidentes e funciona anualmente de Maio até Outubro, uma vez que o rígido inverno americano torna as estradas de acesso a ele, intransitáveis nos outros meses.
Um pouco mais afastado das altas montanhas, um professor de nome Jack Torrance, que acaba de perder seu emprego após agredir um aluno, procura outro meio para sustentar sua mulher Wendy e seu filho Danny. ‘Foi amor à primeira vista’ diria um já perturbado Jack sobre o dia em que pisou seus pés no Hotel Overlook para uma entrevista com o gerente, o Sr. Ullman.
Excetuando-se o nervosismo e ansiedade presentes em qualquer entrevista de emprego, o candidato causou boa impressão. Pareceu responsável e dedicado à família (não se preocupe, Jack não comentou que há alguns meses atrás, ao chegar bêbado em casa, machucou gravemente o filho num acesso de raiva) e via no tal emprego uma excelente oportunidade para escrever um livro e dar um rumo diferente a sua vida. O trabalho é relativamente simples explica o Sr. Ullman: ‘o inverno pode ser extremamente rigoroso. O ponto básico é evitar os altos custos com danos e desvalorização que podem ocorrer nesses meses de recesso. Basicamente você terá que ligar a caldeira e aquecer setores diferentes do hotel, num rodízio diário.’ Contratado! Mas espera aí, deixa eu contar um evento corriqueiro que aconteceu há uns anos aqui mesmo: ‘um dos zeladores, Charles Grady, encarregado da mesma função que você vai exercer, trabalhou aqui com sua mulher e suas duas filhas gêmeas. Ele tinha bons antecedentes e referências, e assim como você, parecia um sujeito completamente normal. Até que um dia ele sofreu um colapso nervoso durante o inverno e, veja só, retalhou a família a golpes de machado, depois se matou com um tiro de espingarda’. Tudo beleza ainda? Agora sim, contratado!
A fantástica tomada inicial do vôo de helicóptero [1] (com uma sinistra trilha sonora [2]) mostra bem o que está à espera da família Torrance: um palácio de concreto cercado de neve por todos os lados. O cenário de ‘O Iluminado‘, que acabou de completar 30 anos, foi inteiramente construído nos estúdios Elstree [3] na Inglaterra, porém alguns planos de fachada foram filmados no Timberline Lodge, no Oregon. Os interiores, todos baseados em hotéis de verdade impressionam quem assiste, até a própria Wendy: ‘É provavelmente o hotel mais bonito que já vi!’ diria ela.
A grandiosidade dos ambientes do hotel aumenta ainda mais a sensação de isolamento e solidão da família. Nos dias que se seguem, Wendy já adquiriu uma rotina: ligar as caldeiras, brincar com Danny, preparar a comida… enquanto Jack escreve páginas e páginas por horas a fio, driblando um ‘bloqueio de escrita’ (writer’s block) aqui, e as interrupções de Wendy ali.
E nesse ambiente salutar, o menino Danny e seu amigo (imaginário) Tony desvendam os longos corredores do hotel. Triciclo na frente e a steadicam (dispositivo para estabilizar a câmera) o seguindo num dos muitos planos clássicos desta grande obra. Danny tem habilidades extra-sensoriais que incluem telepatia e visão de eventos futuros e passados, assim como o cozinheiro Hallorann que também trabalha no hotel e consegue, de alguma forma, se comunicar com Danny e vice-versa.
Tudo isso de paranormalidade fica em segundo plano. O menino sabe de tudo o que aconteceu no quarto 237 e encontra frequentemente com os espíritos das gêmeas nas suas voltinhas de triciclo. Isso tudo acaba afetando sua personalidade que, em certo ponto, some para dar lugar a Tony. Apesar de ser importante para o desfecho, (ainda bem que) o foco fica mesmo na desconstrução de Jack, um ex-alcoólatra, desempregado, que coloca todas as suas fichas no livro que está escrevendo, resultando na enorme pressão que ele coloca sobre si para evitar outro fracasso. Essa fraqueza faz dele um alvo fácil para um ambiente já historicamente carregado de histórias horríveis de assassinato e ele acaba se contaminando, pelo menos é minha opinião. Mesmo porque eventualmente acaba cruzando com o zelador pai das gêmeas.
Com tudo isso acontecendo, imaginem seu sentimento quando Wendy (preocupada com o estado de Danny) tenta convencê-lo a abandonar o hotel.
Esperta, ela chega para conversar com um taco de beisebol na mão, resultando numa cena espetacular de 10 minutos! Jack Torrance quase num transe, tenta encurralar Wendy no Salão Colorado. Ela recua, recua, sobe as escadas e acerta-o em cheio, com gosto. Daí para a cena do machado na porta é um pulo.
Jack ouve um trator de neve chegando e vai checar. É justamente o cozinheiro, que recebe as boas vindas com uma machadada no peito (uma das diferenças para o livro de Stephen King – na obra escrita, Jack Torrance não mata ninguém), mas se torna útil ao fornecer o veículo da fuga para Wendy e Danny.
Duas imagens para terminar: Jack Torrance soterrado de neve, congelado, e uma foto de um baile com data de 1921, onde Jack aparece sorridente.
Final controverso? Não diria controverso, mas aberto a boas possibilidades. O próprio Kubrick já disse em entrevistas que a foto mostra que Jack Torrance é o espírito reencarnado de alguém que já trabalhou/viveu no Hotel Overlook. Porém o final que muitos gostam (eu incluso) é que a foto mostra que Jack foi ‘absorvido’ pelo hotel e ali ficará eternamente.
Magistral, singular, notável! Não faltam qualidades aos planos, atuações, direção de arte e fotografia desta obra-prima do gênio Stanley Kubrick.
Tiago VC Torrance, especial para o Ao Sugo
Gostou? Leia agora mesmo outros artigos de Tiago VC no Nerdices e Afins
Ok, já assistiu ao O Iluminado e sabe que é tenso… mas quer quebrar o gelo? Veja agora Gato por Lebre
Notas
[1] – As panorâmicas do início de O Iluminado (1980) que foram descartadas na edição foram usadas após dois anos pelo diretor inglês Ridley Scott para a primeira versão de Blade Runner, O Caçador de Andróides (1982). Esta versão, com a tediosa narração de Harrison Ford, cumpria as exigências dos produtores que consideravam Blade Runner difícil ou complexo demais para a audiência média, trazendo um final feliz para o casal replicante que foge de Los Angeles em busca da felicidade… cortando então para as panorâmicas de Kubrick e seguido do The End. (Nota do Editor, VH)
[2] – A trilha sonora de O Iluminado foi encabeçada pela dupla feminina Wendy Carlos e Rachel Elkind, porém é conhecido pelas passagens de Hector Berlioz e Krzysztof Penderecki que atuam como um condicionante máximo de tensão no longa metragem. É sabido que Kubrick optou por uma trilha sonora erudita cuja carga estética se assemelhasse ao seu sucesso anterior, 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968). Desde 2001 Kubrick já pedia aos editores de áudio para deixar a trilha sonora orgânica, alternando entre música eletrônica e erudita (no caso de O Iluminado) de modo que o telespectador não percebesse a alteração imediatamente. (Nota do Editor, VH)
[3] – O complexo Elstree de estúdios britãnicos é conhecidíssimo no mundo nerd por ter abrigado grandes produções como os três primeiros filmes de Star Wars (a Trilogia Clássica ou, cá entre nós, os filmes de Star Wars que realmente são dignos do nome), os três primeiros filmes de Indiana Jones, além de O Sentido da Vida, de Monty Python, Labirinto, Willow, Roger Rabbit e O Guia do Mochileiro das Galáxias. Atualmente apenas um edifício permanece em Elstree, estando os demais estúdios do complexo em Borehamwood. (Nota do Editor, VH)












Deixar mensagem para Victor Hugo Cancelar resposta