
Eternos Caçadores de Dragões
A grande fama que o D&D 3.5 atingiu tornava algo inevitável aos olhos mais atentos: evidentemente, era apenas uma questão de tempo até o surgimento de uma nova remodelagem dos livros e do sistema. Daí, em agosto de 2007, a Wizards of the Coast anunciou o lançamento da quarta edição do Dungeons & Dragons. Quase um ano mais tarde, em junho de 2008, os novos livros chegaram às prateleiras. No Brasil os livros vieram quase um ano depois. Menos de cinco anos após o lançamento da versão 3.5.
Como anteriormente, o D&D4 tinha a promessa de agilizar o jogo e simplificar as coisas, mas foi até além disso e mexeu no core, no âmago de cada classe ou conceito, alterando cada uma delas de forma razoavelmente incômoda. De novo, o livro era bonitão. Contudo, os conceitos e arquétipos começaram a dar lugar a habilidades especiais e exageros desnecessários, que deixou novamente o jogo no caminho da busca por poder. O RPG parece aproximar-se perigosamente dos jogos eletrônicos, dos quais deveria, ao menos em tese, diferenciar-se essencialmente.
E então foi que o início do novo milênio trouxe considerável aumento na popularidade dos Roleplaying games, o que tem seu reflexo tanto positivo quanto negativo, principalmente quando falamos de Brasil. Sendo um jogo mais popular, as novas publicações e, no nosso caso, por exemplo, traduções, tiveram seu volume consideravelmente aumentado. Os novos jogadores, vindo de ramificações diversas, traziam novas visões a todo o ritual, contudo, em não poucas vezes, o vício vindo de jogos para adultos ou jogos eletrônicos começam a atrapalhar o rendimento de um grupo. Ainda, jogadores de RPG da linha Storyteller (hoje Storytelling), um jogo recomendado para maiores acabavam demonstrando imaturidade por terem contato com um jogo muito refinado, que é de fato a linha Storyteller, numa idade, mesmo que mental, em que eram apenas pirralhos inconseqüentes.
Eu sei o que muitos devem estar pensando: que eu estaria vendo tudo isso de forma preconceituosa, que estes novos paradigmas são apenas diferentes, e não errados e mais um monte de blá blá blá. Talvez.
Ora, não me levem a mal. Pensemos.
Na realidade, eu mesmo sou um grande fã de jogos eletrônicos. Todavia, apesar da teimosia dos oniricamente menos afortunados, o RPG não existe em outro lugar a não ser ali, na mesa de jogo. Jogos eletrônicos, jogos online, os play by e-mail (famosos pbem) são nada além de um reflexo distorcido e infeliz de tudo que a experiência proporciona. O que esse pessoal tem que enfiar na cabeça é que o RPG é um jogo de imaginação, no qual as imagens que o completam devem ser compostas dentro da mente de cada jogador. Eliminar isso é assassinar uma das principais características do espírito do jogo. Amputá-lo. Sem falar que o RPG é um jogo táctil, ironicamente. Você precisa sentir o cheiro das páginas, sujar-se de grafite, ver restos de borracha e segurar os dados. Tudo faz parte da experiência. Um livro em .pdf não é um livro de RPG, é só um sustentáculo de regras numa tela brilhante, nada mais. É assim desde os antigos livros-jogos, limitadamente embrionários para a velha-guarda. Hoje em dia, ninguém nem sabe mais o que é isso.
É inegável que os jogos eletrônicos, só pelo fato de se basearem no uso da imagem, já estariam fora da delimitação do RPG. E interpretar um papel está um pouco além de ligar o videogame ou computador e criar um personagem. Sem falar que participar do enredo é bem mais que as escolhas limitadas que muitas vezes um jogo eletrônico oferece, ainda que a interatividade de um jogo eletrônico seja, em verdade, encantadora. Em parte muitas pessoas já se deram conta disso, e circula por aí uma nova classificação: ERPG, sigla para Eletronic Roleplaying Game, que até me tranqüiliza, porque mostra um entendimento, embora limitado, que jogo de videogame, por mais legal que seja, não é RPG. Não em sua definição, digamos, “clássica”. É preciso um pouco mais que um bom enredo e criação de personagens para ser “RPG”.
Quanto ao Storyteller, espero que não tenham tido uma interpretação errada de tudo que foi dito até aqui. A linha de publicações que a White Wolf faz, ou ao menos fazia no começo de sua carreira, era brilhante. Eu mesmo sou um jogador e mestre dos jogos da linha, e os acho muito atrativos. O jogo era tão profundo que mexia com o nosso íntimo, e cada sessão de jogo e cada personagem poderiam ser um estudo psicológico da alma de cada um. Na verdade todo RPG é assim, mas na linha Storyteller tudo sempre foi perturbadoramente mais próximo. A luta do homem contra sua besta interior, da razão x instinto é figurada, entretanto muito evidente. Os jogos são sombrios e exploram a nossa psique de forma mais violenta, até. Muito mais eficiente, diriam alguns, que a terapia criada por J.L. Moreno, o Psicodrama, cujo estudo se dá por meio de uma dramatização, que pode até incluir atores profissionais.
O “problema” da linha Storyteller, como eu disse várias vezes, é de um jogo para maiores que atingiu os menores. Esses menores não sabiam explorar direito o que os livros propunham, e o que se gerou foi uma legião de novos rpgistas individualistas cuja visão de jogo é limitada. Querendo ou não, os jogos Storyteller são, no final, uma luta interna de cada indivíduo. Uma batalha consigo mesmo. E que moleque pré-adolescente ou jovenzinho que mal tem pêlo no sovaco sabe sobre seus demônios internos? Pensando nos principais jogos da White Wolf, para eles em Vampiro: a Máscara todos têm cabelos longos e negros e usam sobretudo, Lobisomem: o Apocalipse “é para dar porrada” e Mago: a Ascensão… Bem, acho que eu conheço apenas umas quatro ou cinco pessoas que têm o refinamento para jogar Mago. O que acaba acontecendo é que Storyteller acaba sendo mal aproveitado por exigir, já em sua própria capa, que seja desfrutado por pessoas mais maduras. Preferencialmente, ainda, jogadores mais experientes. E o RPG tem por base, além da imaginação, além da interpretação de papéis, a idéia de cooperatividade, união, grupo. Algo que só pode ser cogitado de rompimento no caso da experiência. Ninguém se divorcia sem ter se casado antes.
Não é um ou outro aspecto que tem acabado com o espírito do jogo, e sim a junção de tudo isso. Acaba por se tornar um ciclo vicioso, porque as novas publicações não se importam muito com problemas como o invidualismo egoísta na mesa ou o complexo de power gamer. Gostaria, mesmo, de ter encontrado Gary Gygax e Dave Arneson, ou Steve Jackson ou mesmo Mark Rein-Hagen para perguntá-los o que eles acham de toda essa nova geração. Os antigos jogadores e mestres olham desolados para este novo deserto de possibilidades, incertos ainda do que fazer, se é que podem fazer algo. As coisas mudaram, e em muitos aspectos não parece ter sido para melhor. Estamos perdidos, sem saber direito qual é o nosso lugar e se ainda temos um lugar. Repetindo as sábias palavras de meu amigo Victor Hugo: acabaram com a nossa brincadeira.
E talvez, só talvez, nós estejamos realmente errados, afundados numa saudosa nostalgia, irreal e nada saudável, poderiam dizer. Mas se tem uma coisa da qual tenho certeza, é que você só pode caçar o dragão dentro da sua alma depois de ter caçado o dragão que raptou a princesa. E você nunca poderá fazê-lo sozinho.
Marcus Vinicius Pilleggi
Imagem: Filme Dragon Hunter
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