Sonho #52

Sonho #52

E ela olhava por horas a fio a linha do horizonte pela sua janela. Jurou ter visto outro coelho ou algum outro bicho branco com relógio e colete, mas acreditou ser alguma alucinação ou piadinha de mal gosto à la Carroll. Todo mundo fala do maldito coelho branco, ele está na televisão, está em tudo quanto é filme, parece que só lembram dele quando querem usar o Carroll. Então devia ser alguma traquinagem da sua imaginação. Um coelho branco de relógio e colete. Era só o que faltava.

Era mesmo só o que faltava. Envolta nestas divagações realmente sem fim o que ela ia fazer para continuar pagando a escola do filho, a faxineira, as aulas que estava fazendo na faculdade particular ou os remédios da mãe? É, as coisas nunca foram fáceis antes, tampouco agora iriam melhorar. Pelo menos seu cérebro cansado ainda lhe permitia alguns poucos momentos de distração lhe dando coelhos de relógio e colete. Ou pelo menos era o que parecia, dando-lhe forças para querer ficar mais alguns minutos na janela longe de sua maldita tarefa de administração da sua maldita faculdade para ver, quem sabe, outro coelho.

Era tudo muito bonito lá fora. Ok, não tinha muito pra se ver, exceto uma arvorezinha pequena de flores amarelinhas que ela não sabia o nome, um cercado de madeira muito porcamente pintado de branco disputando os céus com o mato alto lá do outro lado e meia dúzia de pedras escuras dispostas aleatoriamente tanto quanto as letras num prato daquelas sopas de letrinhas. A grama parecia tomada por uma convenção de ervas daninhas que se organizavam cuidadosamente no meio do jardim, malditas plantinhas escuras e horrorosas que não pediram para nascer nem para ser colocadas lá no meio deste jardim sem graça, ela pensou. Pelo menos os insetos se divertiam no meio delas, uns animaizinhos esquisitos parecidos com aquele inseto que fica rezando, não, louvando a deus. É, bem que eles poderiam estar mesmo louvando para alguém, apesar de não dar para escutar nada da janela. E nessa ela saiu da janela para conhecer melhor a cerimônia que estava se desenrolando no meio do seu jardim.

Quando ela se aproximou notou que os pequenos insetos não haviam se dado conta de sua presença, mesmo sendo um titã para eles de tão enorme. Algumas formigas se dispunham sentadas organizadamente na periferia das ervas daninhas que vistas de perto parecia delimitar um pequeno templo. E no centro, usando um pequeno pedregulho como altar, vários desses insetos esquisitos erguiam suas mãos aos céus e pediam alguma coisa indecifrável, entoando um cântico inebriante que a deixava bastante sonolenta. Como ela conseguia escutar aqueles insetozinhos era algo a se questionar, porém sentia que precisava fazer forças para manter as pálpebras abertas. E que grande susto quando todas as formiguinhas e os insetozinhos sacerdotes gritaram com desespero e saíram desabalados para todos os lados.

De repente os céus ficam escuros, o chão todo é coberto por uma grande sombra e as formiguinhas, desesperadas, saem agoniadas sem rumo, algumas correndo em sua direção e quase a pisoteando. Deveria ser horrível ser pisoteada por todas aquelas patas, quando sente de súbito um grande tremor no chão que a faz se dar conta de que também deveria estar correndo. Mais outro tremor e o teto de ervas daninhas estremece absurdamente, caindo em cima de alguns insetozinhos esmagando-os: finalmente o céu havia decidido desabar.

Em sua fuga disparatada ela encontra um pequeno abrigo embaixo de um enorme monte escuro. Ao sopé da inesperada montanha ela pode ver uma abertura que a leva a uma pequena porta de feições delicadas, toda meiguinha e fofinha, antecedida apenas por um pequeno capacho escrito “Bem vindo”. Nem ela tinha entendido: numa hora estava pensando na tarefa da aula de administração, não, visita um pequeno templo de formigas e insetos devotos no mesmo instante em que alguma coisa imensa de tamanho inimaginável começou muito improvavelmente a sair pulando e pisoteando todo mundo lá embaixo antes de perguntar se havia alguém lá. E mesmo diante de toda aquela turba ela conseguia ver que imensas crateras haviam se formado no chão, amassando enormes porções de grama, todas criadas por grandes colunas cuja superfície pareciam felpudas. Felpudas?

Quando a figura demoníaca e irreconhecível de tão de perto se afastava ela já podia perceber: um coelho branco gigante de colete vermelho se afastava às pressas com um enorme relógio de bolso dourado nas mãos. Nem todas as malhas vermelhas da cidade poderia vestir tal criatura ou todo o ouro do mundo poderiam ser fundidos para criar aquele relógio daquele coelho branco. Maldita alucinação ou piadinha de mal gosto à la Carroll.

Victor Hugo

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