Comentários de um saudosista e um persistente defensor do Dungeons & Dragons
Acabei de ler na revista especializada em RPG Dragon Slayer # 14 que as revistas Dungeon e Dragon, revistas oficiais e especializadas em Dungeons & Dragons está encerrando as suas atividades em setembro deste ano: é o fim da picada, motivo de muita tristeza para os jogadores mais velhos de RPG, especialmente os da segunda geração de jogadores aqui no Brasil. Calma, explico, vamos por partes.
O RPG – ou Role Playing Game – é um jogo bastante incomum para jogadores com ambições muito incomuns. Sempre que preciso explicar para algum leigo no assunto, simplesmente repasso o bla bla bla presente em todos os livros de RPG: imaginem a velha brincadeira de polícia e ladrão, mocinho e bandido, brincadeira de criança que todos nós brincamos algum dia. Nestas brincadeiras cada amigo interpretava um dos lados e bancava o herói (ou o vilão) por longas tardes, porém quando entravam em conflito (oras, o policial sempre andava com um revolverzinho de plástico, assim como o bandido), sempre dava em briga. Dava em briga porque tudo era resolvido pela política – problemática – e quase universal para as crianças do “eu atirei primeiro”. Aí pronto, acabou a tarde de diversão, voltávamos para casa normalmente brigados e provocando um ao outro com “eu atirei primeiro, sou mais rápido no ga-ti-lho, você perdeu, perdeeeeeeu”, bem, essas coisas que serviam para que os adultos usassem contra nós e nos chamassem de crianças. Típico.
Aí na década de 70 do século passado uns norte-americanos já adolescentes inventaram o tal do RPG. A mesa de jogo seria composta pelo Mestre, o jogador que sabe todas as regras de cor e salteado, atua como Mestre, Anfitrião, Árbitro e Contador de Histórias, isso, ele conta sempre uma história fantástica, épica, podendo ser tanto no Velho Oeste, numa Europa Medieval fantástica quanto uma aventura espacial digna da melhor Ficção Científica. Aí os outros jogadores interpretariam heróis que participariam ativamente da história contada pelo Mestre. Tudo muito bonito né? É como se fosse uma peça de teatro, porém em que todos interpretam em torno de uma mesa e sem nenhum roteiro ou script: são os jogadores e o Mestre em conjunto que fazem a história e salvam o mundo numa tarde agradável. Aí, bem, os jogadores de RPG, por quase sempre terem inspirações comuns e visões de mundo muito parecidas quanto a salvar o mundo sendo um Cavaleiro Branco derrotando um imenso dragão dos contos de fadas acabou transformando-se em alvo dos cults que os chamariam de nerds ou do resto nojento do mainstream que os categorizariam como no mínimo esquisitos quando em grupo: imaginem a seguinte situação, numa lanchonete, você comentando com seus amigos que cravou uma espada mágica no coração do temível dragão malvado algumas horas atrás na partida de RPG… Pois é. Gente estranha, esse tal do mainstream e cults também…
O RPG mais famoso do mundo é, sem sombra de dúvida, Dungeons & Dragons, o jogo que inspirou aquele desenho que tanto adoramos, Caverna do Dragão. Isso, esse desenho animado que tinha o Tiamat, o Vingador e o Mestre dos Magos fora inspirado em várias partidas deste RPG, criado no fim da década de 70 e início de 80 e que só chegaria ao Brasil uma década mais tarde. Nesta época em que o RPG não era conhecido por ninguém era muito comum importar a caixa do Dungeons & Dragons (ou, como carinhosamente chamamos de D&D) de Portugal para jogarem aqui em grupos de jogadores bastante corajosos por testarem um jogo tão diferente de War, Banco Imobiliário ou Jogo da Vida, sucessos do momento. Os criadores do D&D afirmam que começaram improvisando com tabuleiros de xadrez, fichas feitas em cartolina e por aí vai, tudo em prol de uma diversão diferente. Além do D&D existia também o GURPS – Generic Universal Role Playing System, um sistema de regras de ambientação universal que possibilitaria partidas que não se baseasse apenas em aventuras num universo de fantasia medieval como o D&D. As primeiras edições eram enormes, um livro bastante grande, maior que uma folha A4 e que não cabia em pé em nenhum tipo de estante ou prateleira, de capa branca, porém produto bastante manuseado junto com o D&D pelos primeiros jogadores de RPG do Brasil.
No começo da década de 90 o D&D chegaria por estas bandas pela Grow (isso, além de ser a detentora genial do War, teve a iniciativa de lançar o jogo por aqui), junto com o GURPS que chegaria traduzido pela Devir (e com uma capa preta, apesar do tamanho continuar desajeitado, assim como os seus ínumeros suplementos que custavam sempre R$ 24, aham, o milagre do Plano Real surtia efeito até nisso) e, entrando na onda, o Hero Quest da Estrela como uma espécie de iniciação ao RPG. Eu sou dessa leva, que começou no D&D e que muitos consideram como a segunda fase do RPG no país, convidando os melhores amigos para tentar jogar este negócio tão esquisito numa tarde depois da aula e, para a minha surpresa, sucesso absoluto. Lembro no dia seguinte os meus amigos me falando que ficaram fascinados com esse tal de D&D… Bom, nós, jogadores desta segunda fase ainda pegaríamos o Advanced Dungeons & Dragons (um sistema aprimorado do antigo D&D pelo qual tenho extrema nostalgia) que sairia traduzido no Brasil pela Editora Abril em edições magníficas e que me renderam horas de jogo memoráveis, além do surgimento dos livros da White Wolf que tomariam o mercado, Vampiro: A Máscara e Lobisomem.
A terceira fase do RPG por aqui foi o povo que começou nas rebarbas da White Wolf: muitos não conheceram o D&D original ou o negligenciavam veementemente acreditando ser muito inferior ao tal do Vampiro: A Máscara, jogo que instigava muito mais o exercício da interpretação de personagens. Nesse ínterim, muitos outros jogos foram lançados, inclusive alguns tupiniquins como o 3D&T, Tormenta, Arkhanum, Tagmar, Desafio dos Bandeirantes e afins. No final dessa época a Wizards of the Coast, a criadora do jogo de cartas Magic The Gathering anunciaria a compra da TSR, a criadora do D&D e AD&D.
E foi o que aconteceu. A Wizards of the Coast lançou a terceira edição do Dungeons & Dragons, bastante bonita graficamente e em termos de regras, bastante dinâmico perante o Advanced Dungeons & Dragons, um trabalho primoroso com a mesma qualidade do Magic The Gathering e que merece todos os meus elogios. O “problema” estaria nos novos jogadores de RPG: o RPG tornara-se um sucesso comercial absoluto, entrariam no mercado vários adolescentes (a grande maioria dos compradores) que estavam descobrindo a magia do RPG sem antes terem conhecido os sistemas anteriores, sem terem lido O Senhor dos Anéis, sem terem assistido 1583 vezes o Feitiço de Áquila e por aí vai, novos jogadores que passaram por cima do Hobbit original para ler a adaptação em quadrinhos, jogar Lineage ou Ragnarok e perder alguma coisa no meio do caminho. Óbvio que a demanda de mercado dita as “regras do jogo” e pronto, o D&D se tornaria pop demais e sem o aprofundamento até mesmo intelectual que o antigo AD&D tinha (em comparação, na época do AD&D existiam aqui e nos EUA zilhões de suplementos oficiais, histórias, revistas especializadas e afins… E o novo D&D não tem – ainda – muita coisa, talvez exceto por um jogo de miniaturas que não podemos considerar como associado ao RPG original… nós, os jogadores mais velhos, nunca precisamos de miniatura alguma para jogar RPG…).
E eis o ponto que queria chegar. Nesta época do primeiro D&D e do AD&D surgiram revistas especializadas no assunto, a Dungeon, revista que publicava só aventuras prontas e a Dragon Magazine, com artigos, dicas, aventuras, fichas de personagens e de tudo um pouco relacionado, revistas que ainda tenho algumas edições em inglês. No Brasil sairia a Dragão Brasil (nossa, como tinha vezes que eu ficava aflito esperando a próxima edição do mês…) e a Dragon também seria publicada brevemente pela Abril, bons tempos… Apesar de ser um jogo bastante restrito, pelo menos nossos grupos de jogadores possuíam aspirações similares, hoje todos crescidos, alguns bem sucedidos aí na vida e que jogam até hoje (muitos, inclusive, que fazem questão de permanecer fiéis ao antigo AD&D), um jogo diferente dos jogos de tabuleiro que sempre existiram, porém fascinante. Com a nova conjuntura do RPG no mercado (conjuntura que explora comercialmente não só os novos sistemas de regras como também os jogos de RPG para computadores que, cá entre nós, de RPG não possuem nada), demorou muito para a Dungeon e a Dragon fecharem as portas, muito infelizmente e com grande pesar. Como não acredito que é tudo regido sob um olhar cruel economicista, mas sim pensando no mercado sempre como uma operação que segue aspirações tanto da oferta quanto da procura, não é possível culpar ninguém, e reitero, não é possível mesmo culpar ninguém, nenhuma editora, nenhuma banca, nenhuma revista, nada, a não ser os próprios consumidores destas coisas: éééé, galerinha nova que anda jogando RPG, vocês mataram a nossa brincadeira.
De acordo com a Dragon Slayer, a justificativa da Paizo Publishing para o fim destas publicações seria a concorrência com os artigos veiculados pela internet: muita gente deixa de comprar a revista porque encontrou algo similar na internet. Justificativa que economicamente é bastante pertinente mas, cá entre nós, uma faca de dois gumes. Eu sou daqueles jogadores que adoram ler coisas oficiais, lançadas pela própria TSR e pela Wizards of the Coast, coisas que estavam nas revistas ou até mesmo no site oficial do D&D que disponibilizava vários artigos gratuitamente online. Bom, tal indignação não é injustificada: nas duas primeiras “fases” do RPG no país o RPG era um jogo feito por jogadores e, desculpe o chavão, para jogadores, nem sempre preocupados com a lógica de mercado. Lembro que naquela época até estas revistas especializadas eram redigidas por jogadores, algo que era comum entre os jogadores como o ato de criar aventuras e até mesmo enormes sistemas de regras próprios e distribuírem livremente para os demais, meramente com o objetivo de se divertirem, exercitarem a imaginação… Hoje, bom, se quiser fazer parte deste circuito, você precisa abrir a carteira e entrar no que todos adoram chamar de Indústria Cultural: joguem no lixo o tabuleiro de xadrez e as fichas de cartolina.
Dungeon e Dragon, sentiremos sua falta. Nesse meio tempo, desejo toda sorte do mundo à Dragon Slayer que permanece entre nós.
Victor Hugo
PS1.: De acordo com o que entendi, é provável que a Dungeon e a Dragon virem revistas online com conteúdo exclusivo para assinantes. Aguardemos.
PS2.: No Brasil no fim da década de 90 o RPG foi associado a várias coisas bastante absurdas, como seitas ou até mesmo cultos satânicos de adoração ao demônio e afins, gerando tumulto e até mesmo implicações legais/judiciais em alguns pontos do país. Para quem já jogou ou leu algum livro de RPG, como por exemplo o Dungeons & Dragons ou até mesmo o Star Wars RPG, torna-se explícita a fragilidade da associação da diversão achando que é um cavaleiro de justa ou um membro da Aliança Rebelde contra o Império Galáctico com algum pacto maligno ou até mesmo satânico, afirmações de pessoas que evidentemente desconhecem o assunto. A estas pessoas – as que não conhecem o tema e insistem em propor longas reflexões de fundamento duvidoso – sinto pela falta de imaginação e capacidade criativa, esferas cada vez mais prejudicadas pelo mundo moderno.
PS3.: Reconheço que é evidente o aumento do número de foruns e sites sobre RPG na internet que permitem o intercâmbio livre de informações sobre RPG e que não estão atrelados à lógica de mercado. Todavia, existem pessoas como eu que ainda tem o apreço de comprar tais revistas, manuseá-las, poder levar embaixo do braço sem estar preso à irritante tela de um micro-computador. A estas pessoas que se acostumaram com a leitura até mesmo de livros no computador ao ponto de abandonar a leitura de material impresso, boa sorte na consulta com seu oftalmologista.
Referência: Dragon Slayer #14
Foto: “During their Advanced Dungeons and Dragons Game“, Flickr
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