Imagem: Poetic Madness, The House on the Rock – Along the way, 2012
Terminei há pouco Deuses Americanos de Neil Gaiman, livro fantástico que me fez recuperar parte daquela sensação quando li Sandman pela primeira vez, a de entrar em contato com outros mundos, outros planos de realidade para que, apesar de estarem lá, nós não damos muita atenção. Sandman apareceu em casa como um brinde em 1992 e é impossível não achar impressionante o escopo da discussão dessa tão famosa série em quadrinhos.
Naqueles tempos ler Sandman em casa perfazia todo um ritual de imersão de que me lembro até os dias de hoje: sentar no sofá da sala, colocar alguma música instrumental light-porém-imaginativa-o-suficiente e deixar ser levado para as entranhas do Sonhar. As músicas do Pat Metheny Group me seguiram por quase todo esse tempo de leitura, sendo hoje indissociável, pelo menos pra mim, a maluquice arrumadinha do guitarrista com o Sonho.
Aqui no Japão, tem sido complicado conseguir esse mesmo ambiente de imersão. As pessoas vêm e vão a todo momento, os metrôs-chikatetsu estão lotados, os cafés-kissaten abarrotados, o relógio não para… pessoas lendo o tempo todo, todas elas nos celulares-keitaidenwa, iPhones, tablets, iPads e afins, absorvidas por uma energia sagrada oriunda de tantos aparelhos aos quais eu mesmo me tornei devoto.
Imagem: American Gods, nelsonpray, 2010
Passei a ler Deuses Americanos como eles, na correria e zum zum zum de um metrô que não fala a minha língua, nos trens que se embrenham no país como artérias vitais, nos cafés que tocam outras músicas, se bebe um café-ko-hi- diferente do meu e as pessoas conversam sobre outras coisas. Pouco a pouco o Pat Metheny Group tocando nos meus ouvidos deixou de fazer sentido e, ao invés de me ajudar no mergulho literário, estava é me atrapalhando.
Deuses Americanos apresenta a proposta de que os deuses são feitos da matéria do Sonho e do Pensamento, cuja existência só pode ser assegurada pela Crença das pessoas, hoje a televisão, a internet, o sexo, a cidade… Deixamos de acreditar e venerar Thor, Mitra, entre outros, em função do jornal televisivo e de tantas comodidades do mundo moderno… Durante a metade do livro acabei habilitando o audiolivro que veio junto no e-book e Deuses Americanos acabou ocupando outras partes do meu tempo livre. Quando não lia, escutava, na calçada, esperando pacientemente com todos os japoneses o semáforo-shingo abrir. A guerra de deuses antigos com deuses novos em que o protagonista, Shadow, se envolveu no livro foi toda atassalhada entre os pin pons sonoros dos semáforos, ordenando as pessoas a caminharem para esta ou aquela direção, como entidades poderosas que garantem um mínimo de ordenamento no caos que é a vida humana.
Imagem: Shibuya, Japanologia, 2014
Deuses Americanos me acompanhou nas caminhadas, disputando a minha atenção com as bicicletas-jitensha que passam sussurando pela calçada, me acompanhou nas visitas aos shoppings-depa-to e nas infinitas escadas-rolantes-esukare-ta. Deuses Americanos foi parar nas lojas-de-conveniência-Konbini, sendo invariavelmente interrompido pelo irashaimase das atendentes, ou então quando perguntavam se queria ou não o recibo-reshi-to, se queria isso ou aquilo. Levei Deuses Americanos para o interior, ao sopé do Fuji, e lá eu também tinha que parar de ler ou escutar para prestar atenção nos ônibus-ba-su, nos trens-densha, no maquinista, nos infinitos relógios que demarcam com precisão a chegada desse ou daquele trem. Ou é isso, ou você não volta pra casa, simples assim.
Só depois que me dei conta do quão impressionante foi essa experiência de leitura. Assim como nas peripécias de Shadow ao assistir uma batalha de deuses antigos com deuses novos, vi no Japão os Deuses Americanos lutarem com muita bravura e persistência, sucumbindo sumariamente aos Deuses Japoneses, aquele do celular-keitaidenwa, aquele do relógio, do trem, do pin pon, da bicicleta, da Konbini.
Victor Hugo Kebbe, em terra de deuses