Cineclube Sci Fi CJRJ – Duna

Duna

Ficções científicas possuem um problema um tanto generalizado: fora autores consagrados, por vezes são uma merda. Um filhote da fantasia, a ficção científica é muito alvo de enredos que nem sempre consideram realmente seus valores, que é o de não só contar uma boa história, como, também, falar de problemas e do cenário atual, mas com uma roupagem fantástico-científica. Assim como o Espelho de Galadriel, a ficção científica conta coisas que foram, coisas que são e algumas coisas que ainda não vieram a acontecer.

Nesse sentido, o papo de hoje está mais do adequado aos predicados que envolvem uma boa história de ficção científica. O clássico Duna, de Frank Herbert, foi publicado primeiramente em 1965 e levou o Prêmio Hugo em 1966, junto com o inaugural Prêmio Nebula como Melhor Romance. O que esse treco tem de legal, afinal?

Bem, muitos definiriam Duna como “um épico espacial”. Nhé, discordo. Primeiro que Duna não é épico. Épico é um tipo de história – tipicamente grega – que é movimentada pelas emoções dos protagonistas (tipo A Ilíada, em que o enredo segue por causa da fúria de Aquiles). Duna parece um conto medieval, que tem seu lugar em um futuro absurdamente distante em que a galáxia organiza-se de forma feudal que responde a um imperador. Na prática, os planetas são controlados por casas nobres diversas, dinastias que respondem à casa imperial Corrino. Duna é um romance politizado, acima de tudo.

Duna

O enredo conta a história de Paul Atreides, herdeiro do Duque Leto Atreides, a família que recentemente assumiu o comando do planeta Arrakis (a.k.a. Duna), o único local conhecido em que pode ser encontrada a especiaria, a melange, considerada o bem mais valioso do universo. Por que? Além de ter sua utilidade como droga, melange é também tempero e também o que faz a viagem espacial interplanetária possível. É comida, droga e “combustível”. E o que deu fama à obra foi sua multiplicidade de temas políticos, religiosos, ecológicos, tecnológicos e humanos que povoam todas as camadas do enredo, tudo isso enquanto as dinastias enfrentam-se pelo controle de Arrakis.

No multifacetado roteiro de Duna, uma das mais conhecidas características é a analogia à caça ao petróleo no Oriente Médio. Não só pela óbvia comparação da melange com o petróleo, mas também porque, em Duna, Paul Atreides também é um messias muito esperado pelos humanos de Arrakis, o povo nômade que vive no deserto, os fremen. A obra de Frank Herbert também foi uma das primeiras do gênero a enveredar pelo engajamento ecológico, já que os fremen adaptam-se ao ecossistema agressivo de Arrakis sacrificando-se numa vida difícil, porém harmoniosa com o planeta. Isso sem o discurso xarope de Avatar.

As aplicabilidades, contudo, não param por aí. Ao falar de levantes de famílias e declínios imperiais por decomposição interna, Frank Herbert está fazendo uma associação – mesmo que inconsciente – com o próprio Império Romano; a decadência de impérios chefiados por soberanos muitas vezes mais preocupados com aparências (como Shaddam IV) ou com a degeneração sexual (o barão Harkonnen) do que com os próprios destinos de suas famílias. A autoconfiança exacerbada que fez Roma cair perante legiões de bárbaros não é tão diferente assim dos majestosos Sardaukar, o exército de elite do imperador, que no auge de sua arrogância são sobrepujados pelos fremen, que valorizam sua comunidade e têm a capacidade de auto-sacrifício.

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Além disso tudo e outros aspectos que é difícil fica esmiuçando em algo rápido como uma resenha, Duna também tem uma maneira muito particular de lidar com a síndrome de super-herói e seus impactos. Na história, Paul Atreides sofre circunstâncias adversas que o colocam num caminho de ascensão muito comum aos enredos que falam sobre o nascimento de heróis. Mas não para por aí. Frank Herbert usa um movimento comum dos anos 1960 na ficção produzida nos Estados Unidos, que mostra a ascensão de um personagem ao nível super-heroico (ou até divino) por meios científicos (O Homem de Ferro da Marvel Comics, por exemplo, teve sua primeira aparição em Tales of Suspense 39, de 1963). Em Duna, Paul é uma mistura de misticismo messiânico com alto consumo de melange, que lhe garantem “poderes” oniscientes que o ajudam na guerra e na conquista de Arrakis e da galáxia, e na louvação a ele como um deus pelos fremen. Contudo, importante dizer, Frank Herbert preocupa-se em mostrar não o desequilíbrio dos poderes de um indivíduo mas, sim, como as decisões e erros dessa pessoa, enquanto líder, pesam e são amplificadas pelos números que o seguem sem questionamentos. O perigo do heroísmo é o perigo do fanatismo, da cega devoção.

Duna foi um sucesso de crítica e público e, assim sendo, era natural que eventualmente alguém tivesse a ideia de adaptá-lo mais cedo ou mais tarde. E até que não demorou tanto. A década de 1970 viu várias tentativas e projetos de levar o livro à sétima arte, inicialmente com a produtora Apjac International, que adquiriu os direitos de filmagem. Contudo, ocupados com outros projetos, o plano não deslanchou. Durante a década, os direitos mudaram de produtora, o próprio Frank Herbert se envolveu e nomes grandes foram levantados, como o Ridley Scott e HR Giger, que chegaram a estar na produção, mas saíram por seus próprios motivos.

Acabou que os direitos para filmar Duna foram para a mão de Dino Di Laurentis, que botou David Lynch no comando para roteirizar e dirigir o longa. E um elenco interessante (nomes como Dean Stockwell, Patrick Stewart e Max von Sydow estão no meio). O filme foi ser lançado só em 1984, 13 anos depois das primeiras conversas sobre sua adaptação.

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Contudo, o resultado ficou um pouco questionável. A verdade é que a produção foi um pouco pobre, com designs muito datados (até mesmo para a época) e um enredo corrido. A trilha sonora é um pop-rock new-age que não consegue ajudar na imersão, e o processo de adaptação poderia ter sido mais cuidadoso. Por exemplo: nos livros, é muito frequente a transcrição do que os personagens estão pensando. E isso foi transposto para os filmes, o que atrapalha o andamento da narrativa e simplesmente não funciona no dinamismo necessário para o cinema.

David Lynch disse que foi muito podado no processo criativo por executivos, o que comprometeu o resultado apresentado. De um jeito ou de outro, falhas como o uso da transcrição de pensamentos para o filme denotam um processo de adaptação equivocado. O que produtores (e telespectadores) devem entender de uma vez por todas é que qualquer obra adaptada ipsis literis para o cinema sofrerá com isso, mesmo que seja a melhor das intenções, já que mídias diferentes comportam-se de formas diferentes e, no final das contas, permitem e fornecem experiências completamente diferentes.

Não é à toa que livros famosíssimos como O Senhor dos Anéis, por exemplo, ou Do Androids Dream of Eletric Sheeps?, que virou Blade Runner, sofrem pesados processos de adaptação, que é justamente para se adequarem à nova mídia para a qual estão querendo fazer a transição. Esse processo, claro, não é isento de falhas, mas o caminho contrário é tão estúpido quanto a completa mudança ao ponto de perder-se o espírito da história.

Duna

É nesse sentido que a minissérie em três partes “Duna”, ou “Frank Herbert’s Dune”, de 2000, é um trabalho muito mais adequado àquilo que Frank Herbert lançou ao mundo em 1965. O roteiro ali mostra, de forma mais bem adaptada, não só a ascensão de Paul Muad’Dib como, também, o medo que ele mesmo tinha dos resultados de sua ascensão (algo que já toca as continuações do livro que Frank Herbert lançou mais tarde.

Ao final das contas, vale sempre conhecer todos os trabalhos antes de tecer comentários e formar conceitos sobre eles. Entretanto, àqueles que sentarem para verem Duna, seja o de 1984, seja o de 2000 ou seja qualquer outro, nunca deve esquecer do escopo que deve ser o final para avaliar qualquer história: conhecer a sua origem. É assim que sabemos o verdadeiro valor de um verdadeiro heroísmo que não se desmancha facilmente como castelos de areia.

Duque Marcus Vinicius Pilleggi

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Um comentário sobre “Cineclube Sci Fi CJRJ – Duna

  1. Nao acho o primeiro filme pior da q o segundo… exatamente o contrario… discordo de que o filme seguiu o livro de forma literal … e em tempo: a melange nunca foi combustivel … ela permite aos navegadores singrar o espaco no sentido de navegacao … nao de propulsao…

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