Quando a Fantasia se transforma no mercado. Ou o mercado em Fantasia. Ou sei lá.
F
altam-me poucas páginas para terminar a leitura de uma trilogia clássica de Fantasia, a tal da Fionavar Tapestry, de Guy Gavriel Kay. Para quem não sabe quem é esse cara, é simples: ele esteve lado a lado com Christopher Tolkien para organizar e dar sentido às notas de J.R.R. Tolkien que formariam o famoso Silmarillion. “Guy Kay”, a forma como foi referenciado no clássico tolkieniano, decidiu então render uma homenagem ao mestre e família fazendo a sua própria trilogia, com seus méritos e tudo mais.
Fionavar Tapestry certamente deu uma guinada no universo da Fantasia que conhecemos hoje. Juntamente com Ursula Le Guin, Guy Kay decidiu produzir algo diferente que não imitasse a narrativa tolkieniana descaradamente como era feito até então. Como homenagem, decidiu manter o princípio tokieniano de recuperar mitologias, no caso, a mitologia das mitologias: o conto arturiano. O livro é bom, não nego. O autor, excepcional.
Como li em críticas por aí, tem gente até que diz que ele é uma espécie de Tolkien bem acabado ou melhor organizado ou seja, não o autor daquele Frankenstein que é o Senhor dos Anéis, tão enrolado e perdido em ritmos diferentes que, francamente, cansam o leitor. Fionavar Tapestry é uma narrativa que deixa claro para o leitor que o autor pensou em um começo, meio e fim, com uma escrita rebuscada em livros longos e tudo mais. Longo até demais. Faltando poucas dezenas de páginas para terminar a trilogia, me sinto cansado, exausto e refém. Sabe quando você olha para a narrativa e pensa “era realmente preciso escrever essa história de forma tão rebuscada e prolixa?”. Se fecho o livro para nunca mais ler, jamais saberei o que aconteceu aos heróis da trama. Se fecho o livro e dou uma pausa na leitura por alguns dias, a retomada se torna mais difícil ainda. Pronto: refém, seqüestrado, abduzido. ALERTA DE GEORGE R.R. MARTIN!
E aí reside o problema, meus caros. Geralmente o nicho de Literatura de Fantasia , mais profícuo nos Estados Unidos e Inglaterra, é composto por longas séries de livros: um livro curto não é mais capaz de dar conta de narrativas tão complexas e ricamente elaboradas. Salve Ursula Le Guin! Ela sim sabia fazer o negócio direito! Detalhar mundos que não existem nunca foi coisa fácil, mas, como um legado porco ou pouco compreendido de Tolkien, os escritores de hoje não sabem mais segurar a mão. Para saber o que aconteceu com fulano ou sicrano é preciso passar por 1000 páginas ou mais. Isso, é claro, se o autor tomou vergonha na cara e decidiu botar um ponto final na coisa toda. Isso me lembra uma conversa que tive com um amigo da área, contando da dificuldade (para os Realistas) em categorizar a Fantasia enquanto Literatura, já que os autores se debruçam mais na descrição do mundo do que na narrativa em si.
O nicho de Fantasia (não só esse, hein?) lá fora é bem marcado nesse sentido, com uma antiga e ampla base de leitores fãs que sustentam essa indústria editorial. Como belamente apontado em The Tyranny of the Talented Readers, os consumidores desses nichos formam um tipo muito específico de leitor que alimenta “a besta” a cada dia que passa, exigindo livros cada vez maiores (e de qualidade duvidosa) meramente pelo hábito de manter a leitura enquanto algo… saudável. Bookclubs que o digam! Não sabe do que estou falando? Compare o tamanho do primeiro Harry Potter com o último, ficando com aquele gosto estranho na boca quando percebemos que hoje em dia é quase uma ofensa comprar livros com menos de 300 páginas. Já sobre os leitores, bem, ao invés de se tornarem seres dotados de reflexão crítica ímpar, são apenas novos membros do maravilhoso pote de acéfalos abrigados nesse planeta. Francamente.
O alerta do texto supracitado vale para o mercado brasileiro, em franca expansão. Está patente a exaltação e proliferação de uma literatura de Fantasia nacional pendurada em elfos, fadas e dragões, entre outras idéias nada originais e que pouco resvalam em qualquer característica do imaginário nacional. Ok, não peço um retorno ao sofrível Monteiro Lobato, mas o uso irrefletido destes símbolos estrangeiros de forma descontextualizada pode resultar em algo intragável. Um título nacional recente de um jovem bruxo na favela carioca não é algo que tiraria (ou vai tirar) um único tostão do meu bolso. Sondem as prateleiras por aí e atentem para os livros de Fantasia nacionais, alguns já duvidosos pelo título… sem contar o tamanho destas séries, chaprocas dignas de um Robert Jordan (que mesmo falecido tem sua saga sendo continuada por Brandon Sanderson) ou George R. R. Martin (outro que entra para a minha lista negra dos autores que perderam a mão). Pensem.
Victor Hugo, cansado
Ufa! Ufa! Verdade, verdade e verdade… fico cansado só de pensar em ler as Crônicas Saxônicas, ou de terminar os livros das Crônicas de Fogo e Gelo… realmente vemos uma invasão de trilogias, quadrilogias (não sei se existe essa palavra), etc… que não tem mais fim…
o lado bom disso é as pessoas estarem lendo mais (o que eu duvido), mas será que tem qualidade toda essa produção que parece ter um único fim…. ganhar dinheiro…
Gostaria de voltar a ler obras com qualidade, apesar de gostar das Crônicas de Fogo e Gelo, venho me sentindo desmotivado com a leitura devido a sua “grandiosidade”, sem falar na dor nas costas de carregar o livro na mochila…
Muito legal as reflexões…. mas enfim… os livros são bons?
Os livros da Fionavar Tapestry? São sim, são empolgantes e o Guy Kay realmente escreve bem. É a tal da Flowery Prose, algo que ele sabe fazer muito bem (e olha que nessa trilogia ele ainda não usava direito). Contudo, é cansativo e triste quando você chega ao final da trilogia e fica torcendo para o livro acabar. “Manter o ritmo” é uma coisa, torturar um leitor que já é cansado por estar sempre lendo tantas coisas é outra, acho.
É realmente um entrave editorial: os próximos livros do Martin não podem ser mais curtos que o primeiro, é mole? Como ele mantém uma taxa crescente no tamanho dos livros (sabendo que o último foi na verdade dividido em dois), fica cada vez mais impossível nadar contra a corrente.
Como diz o artigo The Tyranny of the Talented Readers, o melhor a fazer é boicotar, não pelo fim dos livros grandes, mas pela manutenção dos livros pequenos, que já são poucos. Boicotar é fácil e é algo que faço sem dó. Guerra dos Tronos foi o único livro que li, motivado por amigos e pelo mainstream (mainstream burro, já que o livro é de 1995 e só agora que ganhou destaque) e que já na metade rezava para que acabasse. Como disse uma vez o J.P. do Nerdcast, nós também temos mais o que fazer da vida do que dedicar anos em séries longas… a série de Robert Jordan já passa das dezenas, Terry Pratchett passou dos 30 faz tempo e por aí vai… chega né?
Abração,
Victor Hugo
Harry Potter da favela?? Q falta de imaginação!!
Eu nem lembro mais o nome do livro. Memória seletiva, sabe né?
Abração,
Victor Hugo
Participo de 3 bookclubs, mas não sigo o cronograma à risca. Mas.. pensamento bem, vou perguntar para o Marquinhos se ele não tá a afim de fundar o bookclub dos “Leitores de Saco Cheio”. Tem tudo para dar certo.
Como criador de conteúdo, acho estúpida a ideia de conceber uma história pensando já na quantidade de livros. Por exemplo: definir um tema e atestar “farei uma trilogia sobre isso”.
Para mim, um dos maiores consagradores deste tipo de literatura é o Cornwell. Embora o Tolkien tenha se tornado mundialmente famoso por uma trilogia, ele não concebeu sua história como tal. Aliás, ele era ferrenhamente contrário a ideia de dividir sua obra desta maneira. Embora possamos chamar muitos criadores de fantasia de proles bastardas tolkienianas, a diferença entre simplesmente “criar uma história” para “criar uma trilogia/quadrilogia/pentalogia/polilogia” por si só já é, ao menos em minha concepção, uma diferença abissal entre os tipos de autores.
Grande parte dos criadores de ficção atualmente caíram na febre da novela, incapazes de segurar a pena e finalizar de uma vez suas histórias. Não que a quantidade de uma determinada história vá determinar sua qualidade, mas a verdade é que os grandes nomes da literatura mundial não precisavam aventurar-se por volumes e volumes de uma mesma narrativa. Este tipo de criação acaba gerando uma reflexão viciada no enredo e o autor vira refém de sua própria obra. Ou seja: ele só faz aquilo. Não é à toa que hoje vemos pouco da antiga versatilidade dos autores; o cara cria um universo e fica nele a vida inteira. Se você é um autor publicado e até agora só publicou, sei lá, sete livros da mesma história, então acho que talvez precise rever seus conceitos.
Eu também concordo que a fantasia brasileira está muito dependente da mitologia fantástica tipicamente europeia. É justificável pelo arcabouço cultural destas pessoas que, assim como nós, certamente têm aí um background que envolve quadrinhos, fantasias como Tolkien ou Robert E. Howard e roleplaying games, mas isso não impede que se aventure na riquíssima cultura brasileira e extrair daí alguma coisa válida, também. Se não houvesse nada digno de ser escrito sobre o Brasil e suas influências, estaríamos rodeados de autores prolixos que são prole de autores internacionais e não teríamos manifestações autênticas da qualidade que podem alcançar no Brasil, dependendo de nada além do próprio Brasil. Que o diga José de Alencar.
Tchau!
bem legal comsertesa vo fica mais inteligente com iso beijos.
Muito obrigado pelo compartilhamento, Ana Carolina. O próximo artigo do Ao Sugo é justamente sobre Robert Jordan.
Vida longa e próspera,
Victor Hugo