Eis um filme que tem me causado diferentes sensações ao longo dos anos. Em cada vez que assisto descubro coisas novas sobre a película: gosto, me impressiono, detesto, odeio, adoro e choro. Ah sim, na última vez em que vi, recuperei umas passagens e mensagens perdidas, entendi outras novas e, de pronto, chorei. Senhoras e senhores do Cineclube Sci Fi, fico imensamente grato pela oportunidade de rever e poder analisar, mesmo que de maneira breve, um clássico da Ficção Científica do cinema, Contatos Imediatos de Terceiro Grau.
De acordo com M. Keith Booker em Alternate Americas: Science Fiction Film and American Culture (2006), juntamente com Star Wars (1977), Star Trek (1979), Alien (1979), Blade Runner (1982) e E.T. O Extra-terrestre (1982), Contatos Imediatos de Terceiro Grau (1977) é um dos maiores – e melhores – filmes de Ficção Científica daquele período, mostrando para Hollywood como um nicho tão específico tinha e tem tanta aceitação em bilheteria.
Recém saído de Tubarão (1975), Steven Spielberg chegava ao mundo com o pé na porta e tapa na cara, numa produção singular e de enredo singelo, totalmente banhado não só na recuperação de temas de sua infância (e que são comuns em nossas infâncias, não se engane), mas principalmente na esperança. É curioso que em 1977, momento em que o mundo do cinema levava um choque de realidades e inovações com Star Wars – Uma Nova Esperança, Spielberg encerrava o ano com outra “bomba de esperança”, ecoando nas décadas seguintes com uma poderosa mensagem.
Deserto de Sonora, México – após uma série de avistamentos nos céus por parte da população, uma pequena frota de aviões da Segunda Guerra Mundial é encontrada no meio do deserto e em excelentes condições, porém sem seus pilotos. Uma comissão das Nações Unidas, lideradas pelo francês Claude Lacombe (François Truffaut) e pelo intérprete e cartógrafo norte-americano David Laughlin (Bob Balaban) rapidamente sugerem que tais aviões correspondem à Frota 19, desaparecida misteriosamente em uma missão de treinamento em 1945.
Indianápolis – controladores de vôo ficam assoberbados com o avistamento de Objetos Voadores Não-Identificados em seus aparelhos de radar, testemunhando uma situação de choque aéreo quase iminente. Apesar da confirmação visual, de testemunhas, da conferência do fato com o uso de instrumentos e de todo o ocorrido ser gravado, os pilotos envolvidos não querem reportar o ocorrido de forma oficial, dando o tom do filme nos próximos minutos. Atrelada à possibilidade de vida inteligente fora da Terra, nós, seres humanos, tão arrogantes e presunçosos, simplesmente não estamos dispostos a acreditar.
A partir de então somos levados para a casa do pequeno Barry Guiler (Cary Guffey) em Muncie, Indiana. O pobre menino é acordado pelo som frenético de vários dos seus brinquedos tomando vida no meio da noite. Ainda criança e, como percebe Booker (2006) ser mais sensível e aberto ao extraordinário do que nós, tolos adultos já tolhidos e moldados pela triste e enfadonha realidade, Guiler encara tudo com um sorriso e como uma brincadeira. O fato é presenciado pela mãe do menino, Jillian Guiler (Melinda Dillon), quando carrinhos de controle remoto do filho invadem seu quarto, trazendo de imediato uma dimensão mágica estranha ao nosso plano sensorial e de entendimento, tão estranha a ponto de incitar a curiosidade do pequeno Barry, que foge de casa se entranhando na mata em busca de explicações.
Nas cercanias Brad Neary (Shawn Bishop) pede a ajuda de seu pai, Roy Neary (Richard Dreyfuss) para resolver problemas de matemática, prontamente repelido com um “que-coisa-mais-sem-graça-essa-tal-de-matemática” do pai. Sua mãe Ronnie (Teri Garr) entra na sala relembrando o marido que ele havia prometido levar a família para assistir Pinóquio (1940), filme emblemático para a história e que, por ironia do destino é rebatido por Brad com um “que-coisa-mais-sem-graça-esse-tal-de-filme-de-censura-livre”, ou seja, filme bem ao estilo Disney cuja mágica é “enfadonha”, “tola”. Toda a discussão ocorre simultaneamente enquanto a televisão da casa dos Neary passa trechos de Os Dez Mandamentos (1956) de Cecil B. DeMille, curiosamente mostrando como uma narrativa religiosa e mágica per se que parece deslocada durante aquela discussão familiar. Já naquele momento vemos como Roy Neary é mais afeito ao mundo “mágico” e desprendido do mundano do restante de sua família, criando, segundo Booker (2006) o mote principal que movimenta toda a trama. Toda esta instabilidade é momentaneamente interrompida por algo “mundano”, o telefonema da companhia de Energia Elétrica pedindo que Roy vá verificar a queda de energia em algum ponto da cidade.
Abandonando a sua realidade domesticada, Roy entra em sua caminhonete e se perde na rodovia, quando por fim presencia um Contato Imediato de Terceiro Grau: estranhas luzes sobrevoam seu carro, inexplicavelmente chacoalhando várias caixas de correio no acostamento da estrada e causando uma irritação em sua pele. Atônito, Roy começa a dirigir loucamente pela estrada, quando quase atropela o pequeno Barry Guiler. Na cena do quase acidente Roy conhece Jillian e um pequeno grupo de pessoas que se reuniram para observar as estranhas luzes do céu. Silenciosas, coloridas e flutuantes, elas cruzam a estrada causando o espanto de todos, seguidas da perseguição de viaturas policiais. Aquele evento marcaria para sempre não só a impressão do nosso pequeno grupelho de entusiastas, como também as nossas de meros telespectadores. A partir daquele momento, estava patente a forma como a nossa triste realidade não era mais capaz de dar conta da explicação de eventos extraordinários como os que estavam acontecendo.
Não pretendo me alongar muito mais na trama – afinal, você vai assistir a este filme logo mais – mas é interessante apontar o choque de realidades e ontologias, em especial entre os crentes (Roy, Barry e Jillian) e os “descrentes”, “domesticados” ou “mundanos” (todo o restante da família de Roy). Desde aquele incidente os que presenciaram o Contato Imediato passam a apresentar comportamentos estranhos que vão desde desenhar ou esculpir um estranho monte, ou então reproduzir incessantemente uma seqüência misteriosa de 5 notas. Como exemplo máximo e latente de como Ronnie se nega a acreditar na mera possibilidade de algo estranho, ela recorta e se livra das notícias do jornal que relatam o evento da noite anterior.
Em outro ponto do globo os cientistas liderados por Lacombe buscam compreender por que vários yogis entoavam um mantra singular em Dharmsala, India, composto curiosamente de uma sequencia de 5 notas… Em outro plano de entendimento e de experiência da realidade os yogis apontam para os céus, sensíveis a uma mensagem que os cientistas não conseguem entender nem por um minuto, patente como percebe Booker (2006) na forma como eles passam destrambelhados entre os gurus com gravadores e filmadoras, “nossos” aparatos científicos que aqui são inúteis. O mesmo é percebido posteriormente quando Lacombe e seu time procuram identificar o significado de estranhas transmissões de rádio vindas do espaço, o que sabemos ser posteriormente as coordenadas para o local onde os “extraterrestres” fariam o primeiro contato: o estranho monte tão desenhado e esculpido por todos aqueles que tiveram o contato imediato!
O filme em si traz inúmeras homenagens e instigam a reflexão sobre o embate de ontologias, a saber, o nosso universo cientificizante das estatísticas, do “provável” e do “comprovado” versus o mundo mágico-religioso do inexplicável, daquilo que fere e escapa da nossa capacidade de apreensão, daquilo a que todos preferem não acreditar pelo conforto e pelo medo de desafiar uma mente com tantos quadros mentais já tão longamente quantificados, trabalhados e formatados. Aqui, no entanto, ao contrário de um Conto de Fadas, o mundo do “inexplicável” ainda tem a chance (chance, anotem) de ser “explicado” como sendo algo tecnologicamente mais avançado, mas, como sabemos, onde reside a incerteza, reside o desconhecido e reside o medo…
Essa reflexão é patente em toda a simbologia do filme, além da escolha dos atores para até mesmo a trilha sonora. Graças à ajuda de meu amigo Renato Doho que pude ligar os pontos e perceber como François Truffaut entra no filme com um personagem emblemático. Mentor de Spielberg, aqui no papel de cientista ele entra com o entusiasmo infantil de toda a sua obra cinematográfica, muitas vezes torcendo pelo inexplicável e pelo que não pode ser adestrado e domado por números em prol de uma nova dimensão do pensamento humano.
O uso do tema de Pinóquio na trilha sonora, When You Wish Upon a Star, nos mostra como Spielberg e John Williams estão absurdamente conectados e transportados para o mesmo plano de sensibilidade de Roy, Barry e Jillian.
Sua adoção é uma mensagem clara do quanto este filme retira o telespectador da sua mera condição de… telespectador… para um ser pensante cujas próprias experiências de vida e entendimento de mundo são questionados quando confrontados pelo mundo mágico do inexplicável. Oras, vai agora me dizer que não é mágico um boneco de madeira ganhar vida e, além de tudo, querer ser humano?
Já o uso de uma comunicação musical com os alienígenas pela seqüência de 5 notas também não pode ser passado despercebido. Na época Renato Doho me alertou para o próprio passado de Spielberg, filho de pais separados cuja mãe é pianista e o pai engenheiro de computação. Na arte (e convenhamos, que arte) o diretor consegue reunir os dois, fundamentais na sua própria “formação” e “fundamentação” de mundo. Não posso também deixar de trazer a Antropologia Francesa de Lévi-Strauss, ao dizer que a música tem uma capacidade singular de adentrar numa esfera do intelecto (dada a sua lógica e estrutura matemática) e do sensível (dada a sua capacidade de promover sensações únicas que NÃO necessariamente estão atreladas àquela lógica e estrutura matemática) de modo sem precedentes.
Contatos Imediatos de Terceiro Grau tem a poderosa mensagem de fazer o telespectador pensar e, arrisco aqui, de levar os mais sensíveis para tempos que eles mesmos deixaram lá no passado, tempos não extintos, porém dormentes: a magia de poder enfrentar toda a realidade com os olhos de uma criança, a magia de poder enfrentar o mundo como se fosse uma primeira vez. Se visto como um simples filme de OVNIs e alienígenas, pouco o filme tem a oferecer para uma mente já tão predisposta que exclui uma reflexão maior, a de que o filme nos coloca em cheque com ontologias distintas e formas diferentes de encarar a realidade.
Acho deveras curioso aqueles que se gabam e se tornam arrogantes por vestirem seus jalecos da Ciência, como se isso fosse o que nos distingue dos demais animais. Esquecem-se eles de que toda a nossa Ciência, enquanto ontologia, é fruto de alto anterior, algo que fazemos como ninguém e o que nos define enquanto homens: imaginamos, sonhamos. E eis a maior mensagem de Contatos Imediatos de Terceiro Grau: jamais deixe de sonhar.
Victor Hugo
Fiquei muito feliz com a votação de Contatos imediatos para o Cineclube. Tive a oportunidade de ver uma das naves mais lindas do cinema em tela grande. Linda a cena de comunicação musical. E as palestras foram excepcionais.
O palestrante e escritor Erick Felinto levantou um ponto muito interessante, aprofundando a discussão iniciada na semana anterior pela professora Rita Ribeiro, no curso sobre Star Trek ministrado na Caixa Cultural.
A ficção científica trata dos medos presentes, muito mais do que do futuro. Em 1970 palestinos sequestraram quatro aviões com 300 pessoas a bordo. Nas Olimpíadas de Munique, em 1972, terroristas palestinos sequestraram e mataram onze atletas da delegação israelense. Durante a década de 70 os cineastas demonstram medo do Oriente por meio de metáfora: alienígenas maus vêm para destruir a Terra.
Spielberg, em meio a essa onda de pessimismo, nos traz uma visão oposta, com seres de aspecto quase ingênuo, com uma curiosidade infantil.
Concordo plenamente, Roberta. É, inclusive, o que eu sempre martelo aqui no Ao Sugo, mostrando que Ficção Científica (a inteligente, não a burra) tem justamente essa função e maior virtude, a de falar sobre nós. Fico triste quando vejo seu conteúdo esvaziado, como no último filme de Jornada nas Estrelas, por exemplo. Efeitos especiais não fazem um filme e, apesar de tudo, parece ser o que é mais exaltado nos dias de hoje. Recuperar Contatos Imediatos e outros clássicos da FC se faz mais do que urgente.
Abração,
Victor Hugo
Não poderia concordo mais com o teu comentário sobre Jornada nas Estrelas, Victor.
J. J. fez um ótimo entretenimento. E perdeu (novamente) a chance de recuperar a essência de uma das melhores (senão a melhor) séries de todos os tempos, com discussões incríveis sobre temas que ainda incitam a reflexão depois de décadas, demonstrando a genialidade do Gene Rodenberry.
Ao contrário, Abrams – ao menos pra mim – vai cair no esquecimento como mais um diretor que soube o que fazer para entrar na indústria mainstream do cinema não-pensante.
Talvez o grande mérito dele seja apresentar Star Trek à Nova Geração (no pun intended 🙂
Abraço