Este post é para você que esperou até o último momento a revelação da espionagem de Jefferies como mero delírio, duvidando de seus métodos de percepção. Você, entretanto, que prenunciou fortuitamente o final do Hitchcock: azar o seu, não se deixou levar pelos meandros da focalização. Aham, estou falando de Janela Indiscreta (Rear Window, 1954), clássico de Alfred Hitchcock com James Stewart e Grace Kelly.
Aparentemente, uma das propostas do diretor é convencer o espectador da excessiva imaginação do protagonista a fim de provocar o efeito de desconfiança dos julgamentos de Jeff. Uma das técnicas cinematográficas utilizadas para atingir esse objetivo é, por exemplo, manipular a câmera direcionada à personagem que observa, que fala ou que é o centro de atenção. Na esfera dos estudos literários, há um artifício semelhante chamado focalização: a perspectiva pela qual a narrativa é apresentada ao leitor. Por ser essa a área que me pertence, vou analisar brevemente o filme nesses termos.
Jefferies suspeita que um vizinho cometeu um crime e justifica suas razões para tal ao longo do filme. Teríamos, então, um tipo de focalização interna, que gira primordialmente em torno da visão e das experiências do fotógrafo acidentado. Essa escolha artística favorece sobremaneira a falibilidade das opiniões da personagem. Veja o bafafá em torno da traição de Capitu: na focalização internalizada, o narrador é propenso a se tornar não confiável.
Contrariando esse movimento, pode haver uma brecha no esquema interno: o narrador, ou o movimento de câmera, enfoca um campo externo que extrapola o conhecimento da personagem. Essa dicotomia “interno x externo” é extremamente importante. Se você disser que é uma pessoa de boa índole, não surtirá tanto efeito quanto um terceiro sujeito alegar que você possui tal característica. Visões exteriores produzem o efeito de convencimento sobre quem assiste ou lê.
Em Janela Indiscreta, a cena em que Jeff cochila e a câmera mostra o vizinho, suposto assassino, saindo de casa com a suposta esposa viva é o elemento fundamental que auxilia a construir nossa descrença na denúncia desse bobão desocupado. Esse momento de focalização externa, que foge brevemente do campo de visão do sonolento fotógrafo, alia-se a dois outros fatores de convencimento do espectador: 1) a opinião profissional do detetive Doyle (que crítica explícita, hein, Hitch!), que é contrário às suspeitas do amigo Jeff, e 2) o primeiro julgamento intuitivo da enfermeira Stella, que pressagia vivamente a condenação de Jeff por bisbilhotar alhures, metendo-se erroneamente onde não deve. Tais germes ressonantes são plantados no espectador e fazem com que aguarde ansiosamente o momento em que Jeff cairá no ridículo.
Ao final, ao vermos que Doyle está mais para a Scotland Yard que para Sherlock, o filme destaca que o fotógrafo em repouso prescinde da pintura completa dos pormenores fatuais para atingir a verdade do acontecimento. Tendendo para a imaginação, o método de Jefferies o auxilia a preencher as lacunas de um crime e desvendá-lo à moda de Mycroft Holmes, sem o ordinário e irônico “legwork”.
Natasha Costa, especialmente para o Ao Sugo