A Batalha do Apocalipse: uma ficção (quase) religiosa

Quando comprei A Batalha do Apocalipse: da queda dos anjos ao crepúsculo do mundo (Editora Verus), livro da autoria de Eduardo Spohr, pensei que gastaria uma grana que poderia muito bem ser aproveitada para outros fins nerdísticos. Saí da livraria disposto remotamente a dar uma chance verdadeira para o livro devido a uma viagem que faria e nada melhor que uma longa história te acompanhando durante essa boléia. Na dúvida, carreguei também A Penúltima Verdade dePhilip K. Dick, ficção científica clássica e que teria pouco receio de me debruçar na leitura.

Abri o livro, já na boléia e sob o cheiro da estrada e, com o passar das páginas, quão grande não foi minha surpresa com essa obra brazuca de fantasia. Digo que foi uma surpresa por pontos positivos e negativos, mas acima de tudo, admito de antemão a minha admiração pela coragem e disposição de autor e editora em publicar um livro de fantasia (ainda que não um livro de fantasia tradicional) no Brasil, um país que ainda engatinha no hábito de leitura. A seguir uma resenha analítica da obra com alguns spoilers básicos.

Você é cristão? É cristão e gosta de literatura de fantasia? Caso as duas respostas sejam positivas, você encontrou um bom livro para soltar a sua imaginação (como todo bom romance deve proporcionar ao leitor), mas tenha cuidado. Eduardo Spohr constrói A Batalha do Apocalipse sob uma base completamente cristã, contudo, através de uma liberdade criativa que lhe permite tomar a mitologia cristã sob um prisma diferenciado, lembrando uma percepção gnóstica do cristianismo. E talvez esse seja o maior mérito e o maior demérito de toda a obra. Mas e caso você, leitor e leitora, não toma o cristianismo (em qualquer uma de suas variações) como sua opção religiosa? Creio que não há problema. Talvez, como leitor, esse desligamento do cristianismo lhe permita apreciar mais o que Spohr buscou criar em seu universo literário.

Toda a história de A Batalha do Apocalipse gira em torno de Ablon, um anjo renegado. Um demônio? Não. Aí começa, de certa forma, a liberdade criativa de Spohr com a matéria religiosa. Tradicionalmente nas religiões abraamicas é relatada uma rebelião celeste, apenas uma, liderada por Lúcifer. No caso, Spohr opta em seu enredo, em inserir duas rebeliões celestes. E situa a rebelião de Lúcifer como a segunda rebelião, mais dada a vaidade de seu Arcanjo do que necessariamente por um ideal específico.

No caso de A Batalha do Apocalipse, a primeira rebelião, instigada por 18 anjos, é fomentada contra a tirania do Arcanjo Miguel, verdadeiro homicida no pior sentido do termo. Por suas ordens, a humanidade quase foi dizimada graças ao Dilúvio, além de cidades como Sodoma e Gomorra destroçadas e suas populações completamente extintas, entre outras catástrofes. Para Ablon, o Querubim protagonista do livro, os massacres fomentados pelo Arcanjo Miguel, seus asseclas e alguns anjos neutros eram afrontas diretas ao Criador. E o Criador? Que papel Ele tinha neste conturbado cenário celeste?

A resposta é o Sono do Sétimo Dia, o Shabat mais, mas muito mais metafísico.

    “No início D’us criou os céus e a terra…” (Bereshit 1:1)

Durante seis dias D’us criou. “E D’us viu tudo que Ele tinha feito e, era muito bom…

“… Era noite e era manhã, o sexto dia. E os céus e a terra e tudo que havia. E D’us completou no sexto dia Sua obra que Ele tinha feito; e Ele descansou no sétimo dia de toda a Sua obra que Ele tinha feito.

“E D’us abençoou o sétimo dia, e o santificou, porque nele Ele descansou de toda sua obra que D’us tinha criado…” (Bereshit 1:31-2:3)

É isso mesmo. D’us é Ausente nesta história, embora sua Ausência seja quase tangível e tenha uma importância central na trama. E por essa ausência, Ablon e seus anjos tornam-se renegados, expulsos do Céu e obrigados a viverem como homens e mulheres imortais, mas passíveis de morrerem. E é o que ocorre. Dezoito anjos renegados são caçados e eliminados um a um, restando apenas o Primeiro General, Ablon.

Spohr, acredito, buscou dar essa densidade de solidão e honra a Ablon justamente para lhe configurar uma personagem mais cativante, mas é algo que em suas primeiras cinqüenta páginas o autor não consegue fazê-lo com sucesso. Ablon parece pouco natural, ao contrário da personagem feminina Shamira, uma feiticeira humana pós-diluviana. Talvez tenha sido uma opção de Spohr em seu livro, mas considero uma opção arriscada. O enredo é atraente, mas Spohr não emprega um ritmo convincente, embora o cenário de Primeira Queda e do conflito com o Rei Nimrod fossem muito promissores. Outro ponto falho, em minha opinião, foi citar constantemente os dezoito anjos renegados e pouco ou quase nada apresentar essas personagens, aparentemente tão interessantes como seria Ablon.

No entanto, Ablon (assim como talvez o próprio autor) aos poucos galga maior confiança, se apresentando de maneira mais “crível” conforme sua longa jornada vai tomando corpo. Um ponto interessante nessa jornada de Ablon é a rica diversidade de coadjuvantes que Spohr lhe “concede” e os cenários que se encontram. Existem, contudo, cenários pouco explorados pelo autor, como a China ou mesmo o Egito. Além da ausência de D’us, existe também a ausência de pesquisa mais apurada, para dar maior envergadura ao personagem Ablon e o mundo antigo ou mesmo medieval. Chega determinado momento que tudo é tão rápido e mitologias são reunidas e separadas bruscamente que fica difícil torcer, realmente, para uma vitória do nosso protagonista. Digo isso porque Spohr peca por apenas insinuar “divindades” em confronto ou mesmo em “aliança” com Ablon. Como exemplo, temos o caso das “Guerras Etéreas”, no qual os Arcanjos e Anjos combateram divindades em diversos rincões do mundo, saindo-se vencedores ou derrotados, dependendo dos casos.

Ao mesmo tempo que esse mundo que vivemos no livro é repleto de uma diversidade cultural metafísica, o cristianismo é preponderante sobre toda a narrativa do livro. E até no momento de citar o papel do Arcanjo Gabriel para a humanidade, Spohr outorga uma importância elevada ao “Salvador” (termo que emprega no livro para se referir a Jesus) e só cita nominalmente o Profeta Muhhammad, gerando uma sensação de “panfleto doutrinário cristão” neste momento. É engraçada essa “ausência” do Islã na importância que o Arcanjo Gabriel tem para a humanidade, engraçada porque Gabriel, segundo a tradição islâmica, foi o Mensageiro que obrigou o Profeta a recitar o Corão e gerou uma rica e bela religião como o Islã. Isto, entretanto, passa batido, ainda mais pela verdadeira relação que o Arcanjo Gabriel revela ter com o “Salvador”.

Mas são os preparativos da guerra, o denominado Apocalipse, que mobilizam Ablon. Spohr aprofunda uma sensação de constante intriga, mas desenvolve lamentavelmente um romance quase à la “maria do bairro” entre Ablon e Shamira, o que, na minha opinião, foi péssimo para o conjunto da obra. Ablon e Shamira viveram por milênios, desejando um ao outro e nenhuma vez, mas nenhuma vez mesmo tem um mínimo de relação íntima? Sério, senti um verdadeiro puritanismo cristão neste momento, daqueles dignos de Calvino e sua turma.

De qualquer forma, é a guerra que importa, ainda mais uma Guerra como o Apocalipse representa. Apocalipse significa revelação e Spohr consegue aumentar “a pegada” da história em sua última parte, chegando mesmo a empolgar o leitor. Neste momento, dá pra sentir um autor mais maduro e um protagonista refletindo esta trajetória do autor. De certa forma, as surpresas são boas e melhor ainda é a sensação de que os percalços foram superados, tanto do ponto de vista da construção da narrativa e das personagens quanto do ponto de vista da redação do livro.

A Batalha do Apocalipse: da queda dos anjos ao crepúsculo do mundo é uma boa pedida. Acredito que o maior mérito seja tanto do autor quanto da editora por se arriscarem a encarar um mercado literário ainda sombreado, como o brasileiro, com pouca clareza quanto aos seus resultados. Nada melhor que parabenizar essa produção literária e esperar que outras obras de literatura de fantasia e também de ficção científica de autores brasileiros venham a ser publicadas. Seria muito bom!

Ben Hazrael, direto do Poliarquias e do Cabaré das Idéias para o Ao Sugo

12 comentários sobre “A Batalha do Apocalipse: uma ficção (quase) religiosa

  1. Duas coisas que me incomodam nessa história: a questão do livre-arbítrio, para começar. É-nos dito que anjos não o possuem, que são guiados apenas por sua natureza, mas é evidente que os personagens fazem escolhas o tempo todo ao longo da história. Outro ponto é que Ablon é um personagem quase infalível; que, mesmo quando está em perigo, nos faz saber de alguma forma que sobrepujará quaisquer possíveis riscos que lhe sejam apresentados. Em “Filhos de Éden”, segundo livro de Spohr (e cuja história antecede à de “A Batalha do Apocalipse”), inúmeros aspectos do enredo se tornam mais possíveis, mais “reais”, e finalmente passamos a temer de verdade pelo destino dos personagens.

  2. Eu ainda não li Filhos do Éden, mas irei lê-lo após terminar A Batalha do Apocalipse para ter um entendimento melhor quanto ao que o autor quer apresentar. Concordo que sempre tenho a impressão que nada irá acontecer com Ablon, mas fiquei satisfeito em saber que durante seu encontro com o anjo Gabriel, mostrou-se sua fraqueza perante outros anjos de maior poder que ele. Até aqui, tenho gostado realmente do livro. O início é muito enfadonho. Quase não comecei a ler, mas logo toma forma.

  3. To gostando muito do livro, algumas vezes me perco entre as memorias de Ablon, entre o passado e o presente mas ja estou ansiosa para ler o Jardim do Eden.

      1. Muito interessante. Colocarei nos próximos dias as resenhas destas continuações, aí espero que seja útil na sua leitura então, Kayla.

        Abração,
        Victor Hugo

  4. Comprei esse livro quando lançou, mas só agora consegui ler. As primeiras páginas apresentam tantos nomes e tanta confusão de história, que na época desisti de ler. Hoje me arrependo, porque é um livro excelente! Não concordo que há uma ‘pregação cristã’ nele, até porque duvido que algum religioso goste de ver Miguel como um ser mimado e pretensioso, tampouco visualizar certa ‘lógica’ no ódio de Lúcifer. Isso pra não dizer que tornar Jesus em um simples ‘Salvador’ também não me parece muito adequado para um discuso cristão. Justamente por isso vejo o livro como fascinante – com alguns momentos chatos, porque são fatos que necessitam um ‘livro’ próprio – mesclando o clássico ensino bíblico, com o contexto atual e, na ficção, futurista. Não sabia que havia outros livros, mas já me animei para ler (aliás, algum deles é sobre As Guerras Etéreas? Porque daria um ótimo livro!).

  5. eu amei o livro
    porem cometi o erro de ler os dois livros subsequente que é filhos do éden : herdeiros de atlantida
    e filhos do éden : anjos da morte
    agora estou lendo a bataha do apocalipse ….
    porem a literatura do livro e muito dificil de ser entendida uma vez q a historia de ambos nos deixa em mundos diferente. nos deixa totalmente perdidos em algumas partes. mais eu particularmente adorei a historia em si, gostei do seu contexto e das tragentorias q me leva/levou a cursar.

  6. Ja li a batalha do apocalípse, herdeiros de atlantida,anjos da morte,e estou lendo paraiso perdido,recomendadissimo todos esses livros excelentes mesmo,quanto mais se aprofunda na leitura mais se quer ler nao da vontade de parar otima leitura,obrigado Eduardo Spohr.

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