
Uma disputa clássica e ainda corrente no mundo nerd é sobre a primazia da Fantasia versus a Ficção Científica e vice-versa, assunto que mobiliza fóruns de discussão na internet, deixam os fãs, autores, livrarias e editoras atarantadas. Tenho alguns amigos que ainda brigam em torno da questão, tópico que a meu ver é uma discussão inútil.
Como já dito aqui em Ithildin, o gênero da Fantasia é aquele da Ficção em que se extrapola as teias da realidade, tendo a magia e elementos sobrenaturais como eixo ou então aspecto importante da ambientação ao se contar a narrativa. Dragões, unicórnios, elfos e outros seres fantásticos habitando continentes mágicos, tudo é possível…
Tendo todas as mitologias e clássicos da literatura como A Odisséia como “pais”, o gênero da Fantasia é um dos mais antigos de toda a história da humanidade. Como já disse, o homem conta histórias sempre que se entendeu por gente. E por contar histórias, esqueçam a pobreza da abordagem psicologizante e contemporânea das narrativas que tentam prender cada vez mais as narrativas na realidade.

Esse movimento empobrecedor é mais contemporâneo do que as pessoas conseguem imaginar (ou entender), se esquecendo que a Fantasia e os Contos de Fadas são os mais livres ou então mais puros de todos os gêneros, tendo como norteadores apenas a fantástica capacidade imaginativa do ser humano.
A Ficção Científica é um dos maiores e melhores frutos da Fantasia, acrescentando como elemento primordial as especulações da realidade acerca do pensamento científico e do progresso. A característica impulsionadora de extrapolar as teias da realidade continua presente, mas agora temos em onde nos segurarmos, a Ciência.
Ao invés de tentarmos olhar para um passado mítico/místico com dragões, castelos e princesas, olhamos para o futuro, lógica de pensamento que só se tornou possível de fato a partir da virada do século XIX para o século XX, quando a Ciência e os primeiros resultados “palpáveis” do método científico começaram a pipocar.

As lógicas comtiana do progresso e o evolucionismo darwiniano invadiram, impregnaram (e talvez mais emporcalharam do que ajudaram) o pensamento social em vários níveis, apontando como horizonte o Futuro das máquinas, da exploração espacial, do fim dos problemas sociais, da dominação absoluta da natureza. Eis a Ficção Científica.
Sou fã ardoroso de Ficção Científica e Fantasia. Apesar de compreender com bastante perícia as questões elencadas pelos defensores de um ou outro gênero, acho bastante difícil compreender a disputa. O maior mérito da boa Fantasia é de discutir o estatuto da humanidade frente aos elementos fantásticos, de entender noções últimas da vida com base em personagens, criaturas e cenários que não existem. O maior mérito da boa Ficção Científica é de discutir o estatuto da humanidade frente aos elementos fantásticos, de entender noções últimas da vida com base em personagens, criaturas e cenários que não existem. Conseguiu entender a diferença?
Como tenho acompanhado no Goodreads há um tempo, muitos observam o crescimento exponencial dos títulos disponíveis de Fantasia em relação aos de Ficção Científica. Apesar do gênero da Fantasia contar com um número bastante restrito de autores clássicos (dá para contar numa mão) em relação à FC, é evidente o interesse cada vez maior pelos títulos que trazem dragões, fadas e elfos em oposição aos robôs, naves espaciais e alienígenas. Dentro não só do aumento de leitores de Fantasia, mas também desse contexto de migração dos leitores de um gênero para o outro, estaria a Ficção Científica definhando lentamente?

A questão nos remete às décadas finais do século XX, quando as produções de Ficção Científica ficaram (em minha opinião) muito mais maduras, porém justamente mais áridas, sendo o Cyberpunk talvez o último respiro, o ato final que, infelizmente, era natimorto. A partir da década de 1970 deixamos de especular sobre o nosso futuro, mas sim inventá-lo, até que muitas das geringonças que você usa hoje em dia foram criadas com base na Ficção Científica contemporânea. As contribuições de Jornada nas Estrelas para o desenvolvimento científico e tecnológico são para lá de inegáveis…
Encontrar um bom livro de Ficção Científica nos dias de hoje é um grande desafio, apesar de todos estarem falando sobre a nossa situação atual, de problemas ambientais graves, aumento da desigualdade social e o avanço desenfreado e não discutido da tecnologia em prol do capitalismo. Desde Phillip K. Dick em Do Androids Dream of Electric Sheep?estamos nos defrontando com o aqui e agora. Ok, talvez futuro para Dick naquela época, mas que hoje é a nossa realidade. O futuro brilhoso sugerido pela Ficção Científica ficou enegrecido, sombrio, efeitos da literatura punk. Isso também é incontestável, o que chamo brincando de “armadilha cyberpunk”.
O aumento da procura pelos títulos de Fantasia talvez esteja atrelado então à busca de realidades diferentes da nossa (olha lá, gente, aspecto fundamental da Fantasia e também da Ficção Científica). Isso de modo algum pode ser encarado como mero escapismo, mas deve ser entendido primariamente como o exercício do que temos de melhor, a imaginação.

Bolar um conto realmente inédito de Ficção Científica nos dias de hoje é um mérito gigantesco, visto que a obra deve contemplar (nem que seja pelo afastamento, pela negação) de tudo o que já foi escrito e, o mais importante, ainda estar amarrado no pensamento científico que, para muitos hoje, constitui a nossa teia da realidade. Já com a Fantasia, estamos livres para exercer a imaginação como sempre estivemos.
Longe de pregar ou pensar no fim da Ficção Científica, gênero que estimo tanto quanto a Fantasia, não sei como sair imediatamente dessa sinuca de bico, mas encarar os fatos como aparecem. Apanhemos o histórico do desenvolvimento do pensamento científico e comparemos com toda a produção em FC e poderemos ver claramente o quanto (e para onde) a coisa andou. Agora jogue tudo isso no lixo e pronto, você está preparado para ler e escrever Fantasia.
Como são poucos os que conseguem realizar com sucesso esse hercúleo desprendimento (eu não consigo), então parem de brigar por dois gêneros que em boa verdade são a mesma coisa, briga que é resultado de uma incrível falta de imaginação. Honre as suas calças se você é fã de ambos e comece então a Imaginar.
Victor Hugo, preso em dois mundos
Interessante abordagem do gênero de ficção científica como se estivesse dentro da fantasia. Me lembrei do livro que Asimov organizou com contos de fantasia chamado Magos, acho que para ele não havia essa distinção entre fantasia e FC.
Sempre que pensava no na ficção também não visualizava longe da Fantasia. Apesar de não achar tão distante, realmente vemos hoje em dia poucos escritos sobre FC, exemplo disso são alguns filmes do gênero serem releituras de filmes e escritos antigos como “Total Recal”.
É uma pena que não tenhamos novidades, vamos esperar que isso se altere em algum momento, enquanto isso aproveitamos a enchente de livros de fantasia.
Abraços e Parabéns pelo texto.
Opa Ernesto,
Muito obrigado pelas considerações! Ultimamente ando lendo n-livros ao mesmo tempo, de Fantasia e Ficção Científica. A produção continua interessante, apesar da queda dos livros de FC… vamos ver se o pessoal da FC consegue sair desse looping trágico, não é?
Abração,
Victor Hugo