Película de 2004 pela Sunrise, Steamboy é uma animação japonesa bastante vinculada ao imaginário Steampunk, apesar de não ter justamente a característica “crise existencial e agonizante punk” do movimento. Produção que durou 10 anos (considerando aí alguns problemas financeiros logo no início do projeto), Steamboy reuniu a melhor perícia em animação japonesa com mais de 180.000 quadros, além do auxílio de computação gráfica para criar várias cenas bastante complexas.
A história se passa na segunda metade do século XIX na Inglaterra, uma visão steampunk e alternativa do nosso passado histórico, alterando drasticamente (ou extrapolando) os efeitos da Revolução Industrial. Se o homem conseguiu controlar a produção com a máquina a vapor, no mundo de Steamboy o homem alcançou o ar com dirigíveis, os mares com embarcações-fortalezas e a terra com trens mais velozes, entre tantas outras máquinas mirabolantes. Finalmente a ciência descia ao chão e oferecia ao homem a capacidade de atingir coisas até então mágicas, estando os gênios entre aqueles que conseguissem domar o vapor em prol do progresso.
Dentre eles, somos apresentados a Lloyd e Edward Steam, pai e filho que descobriram uma forma de comprimir o vapor em um dispositivo mirabolante, a Bola-Vapor, fonte quase que infinita de energia. Desenvolvendo três destes artefatos, ambos iniciaram a construção de uma fortaleza voadora até então inimaginável na Inglaterra de 1866, o Castelo-Vapor. Financiado pela indústria armamentista norte-americana O’Hara, os Steam apresentariam a sua grande invenção na grande Exposição Universal em Londres naquele ano.
Um acidente com o sistema de válvulas, engrenagens e tubos acaba desfigurando Edward Steam, agora uma figura transtornada pelo poder da Ciência. Num clássico arquétipo Steampunk, Eddy se transforma no cientista ensandecido (mad scientist) que quer apresentar ao mundo o poderio máximo do conhecimento, alcançando pela ciência um nível divino de intervenção da natureza. Com a Bola-Vapor, Eddy almeja controlar terremotos, os efeitos dos mares, entre outros tipos de intempéries que assolam a humanidade.
Diante do delírio, Lloyd Steam imediatamente captura uma das três Bolas-Vapor e envia ao seu neto também gênio, James Ray Steam, para que possa escondê-la do cientista maluco virou seu pai. Sem uma das três Bolas-Vapor, todo o desenvolvimento do Castelo-Vapor se vê neutralizado, começando aí a aventura do pequeno James. Steamboy acaba se provando não só uma aventura steampunk que discute Humanidade/Ciência, como também faz esse paralelo com o plot de pai/filho o tempo todo.
Como bem disse Patrick Stewart, Capitão Picard e dublador de Lloyd Steam na versão americana, Steamboy está absurdamente distante de qualquer animação ocidental, devendo ser considerada diferente de tudo o que já foi visto (isto é, para aqueles que não conhecem muito bem animação japonesa…). Não existem momentos de redenção, de carinho exagerado ou “fofinhos” como nas animações Disney, assim como não temos animais falantes e nem enredos imbecilizantes entrecortados com infinitas cantorias.
Como nas melhores animações japonesas que discutem pesadamente a Ficção Científica (como Metropolis, Ghost in the Shell, Nausicaa, Freedom, Akira, Cowboy Bebop, etc), Steamboy apresenta não só uma leitura idealizada (e steampunk) da Inglaterra victoriana cheia de engrenagens e vapor, como também discute como ninguém a dicotomia homem/máquina. De certa forma, a ambientação é steampunk, porém com um enredo esvaziado da conotação “punk”. É, eu até entendo aqueles que chegarem dizendo que a animação não é ou faz parte do movimento, mas estou querendo ser didático, olha que bonitinho. Falta em Steamboy a transgressão do punk e do enaltecimento do indivíduo enquanto ser no mundo, ok, ok… Mas o filme não deixa de ser interessante para sermos apresentados (ok, de maneira breve ou parcial) ao que se definiu como Ficção Científica retroativa.
Em determinado momento, vemos que para controlar o Castelo-Vapor Edward precisa se conectar fisicamente (com o seu braço mecânico cheio de rodas dentadas) com os mecanismos de controle, fusão que estamos carecas de ver nas melhores discussões cyberpunk da década de 80. Não importa se são chips, cabos óticos, vapor ou rodas dentadas: a evolução tecnológica desenfreada que une o homem à máquina continua algo que deixa nossas mentes inquietas… Oras, basta ler toda a coluna do Portão de Tannhauser aqui para saber.
Sendo a animação mais cara já feita no Japão, Steamboy foi recebido de maneira ambígua e ranzinza pela crítica. Como disse o Washington Post, “the movie never transcended its elaborate production work to achieve an independent reality. It’s simply pictures of what could have happened.“… francamente, quem escreveu esta crítica não faz a menor idéia do que é Steampunk, entre outros destes movimentos punk da Ficção Científica.
Se já não prevemos o futuro, mas o inventamos com a Ficção Científica, todos sabemos que vivemos em uma realidade “cyber” que já era preconizada pelas produções do gênero na década de 80. Sendo uma leitura retroativa e anacrônica de um passado cujo futuro chegou mais cedo, aí reside a característica “pé-no-chão” do steampunk que marca todo o filme de Otomo.
Isso é justamente o que se quer mostrar no steampunk, o como realmente poderia ter sido, mesmo sendo uma visão imaginada da coisa toda… o importante não é a tecnologia ou a visão da tecnologia em si, mas sim o relacionamento do homem em seus dilemas mundanos com esse avanço tecnológico “fora de seu tempo[i]”.
Steamboy vale por alcançar vários nichos considerados obrigatórios para uma pessoa pensante, primeiramente por ser uma película bastante interessante (porém não a melhor) do universo da animação japonesa adulta, em segundo lugar por ser uma de Katsuhiro Otomo (hoje expoente da produção de anime) e em terceiro por discutir de maneira bastante direta, simples e sem delongas o que a gente mais gosta de fazer na Ficção Científica, o tal do homem vs. máquina de um ângulo bastante interessante. Lógico, não necessariamente tudo nesta mesma ordem.
Assistam Steamboy, para aqueles que não conhecem o Steampunk e para aqueles que já conhecem e querem mais. Ah, vale o recado: não se sintam injustiçados, já que o Steampunk tem retorno garantido aqui no Ao Sugo, em breve também discutindo dieselpunk e biopunk. Nesse ínterim, vá se preparando para o Cyberpunk em o Portão de Tannhauser.
Victor Hugo, hoje Steampunk
[i] Aliás, essa é uma das minhas críticas aos adeptos do movimento que adoram ler contos que dão ênfase no “como” funciona toda essa tecnologia e esquecem dos personagens humanos… infelizmente super-exposto e quase desgastado tal qual o Cyberpunk, essa molecada de hoje abraça o “punk” com a mercadológica de maneira realmente escrotizante… está aí um povo que perdeu alguma coisa no meio do caminho.
Assisti novamente esse filme esses dias e não lembrava como era bom o filme, acho que uma das melhores animações que já vi, isso que não sou fã de animes.
Também acho que faltou um pouco do Punk, mas entendi que o foco do filme é a tecnologia a vapor, e a sua utilização como as armaduras, tanques, submarinos, etc.
Acho que o ambiente da Liga Extraordinária(quadrinhos) seria um exemplo melhor de Steampunk, entretanto o filme capta bem o clima da época e a evolução tecnológica a vapor.
Gosto também da crítica do filme em relação a utilização da tecnologia para fins militares e a necessidade de avanço a qualquer custo, acho que são aspectos que são bem abordados pelo interesse de alguns personagens.
Enfim, um ótimo filme.
Abraços, Ernesto.