Amortalidade

Estavam dois irmãos no alto de uma montanha. Sentados, pensavam. Suas faces gêmeas eram belas, atemporais. Feéricas, poder-se-ia dizer. Não havia diferença entre ambos, salvo o brilho dos olhos. Suave e caloroso como o colo de uma mãe amorosa num deles. Frio e penetrante, perturbador, no outro. O primeiro falou, e sua voz era melódica e maravilhosamente afinada.

– Irmão, diga: afinal, o que é mais mobilizador, o Amor ou o Ódio? – indagou Devaneio.

– Não é óbvio? – respondeu o Pesadelo, com a retórica sob sua língua ferina.

– Não acho. Dizem que o Amor é mais poderoso. “Move montanhas”, diriam os mortais – retrucou Devaneio.

– Bem, tolo irmão, se o Amor move montanhas, então o Ódio move cordilheiras inteiras. – acrescentou o Pesadelo – Esta velha estória de que o Amor supera tudo é bobagem. O Amor morre fácil. Abres o coração a alguém, e esse alguém rasga tuas emoções, perturba a tua razão. Tira teu juízo e o arremete numa postura mesquinha e imbecilizante. Desvie apenas um pouco de qualquer que seja uma efêmera conduta ideal, e será a tua ruína. Vacile, e o Amor fraqueja. O Ódio, entretanto, resiste às viradas das marés. Mesmo que seu motivo seja destruído, sua simples lembrança faz com que ele permaneça. O Amor é conformista, ao mesmo tempo em que a inconformidade reina no domínio do Ódio… Enquanto o Amor se desvia dos obstáculos, o Ódio os destrói. Seu poder é tão intenso que o próprio Amor pode nele se transformar. E digo mais: o Amor pode se transformar em Ódio, mas o Ódio jamais se transformará em Amor. Talvez por isso que o Amor seja tão… odioso. Amor exige concessões, é aprisionamento; Ódio é liberdade, na medida mais primordial que a liberdade pode ter… Existe, ainda, outra coisa que mostra a força do Ódio: as pessoas buscam o Amor e se esquivam do Ódio. Chega a ser irônico, então, que se odeie mais do que se ame. Ou minto? Não é preciso buscar o Ódio; ele encontra quem ele quer encontrar. Ódio… eis o mais poderoso dos abstratos.

– Não concordo, mesmo com este teu monólogo repleto de reflexões lógicas, repleto de sarcasmo e de… bem… ódio – cantou Devaneio – Ódio é maior conformidade que Amor. Amor não é lógico.

– Não te enganes – volveu Pesadelo – Tem-se o costume de odiar o Ódio; mas muitos odeiam o Amor. Isso sem mencionar que existe quem ame odiar. Se o Ódio é tão ruim assim, por que certos indivíduos têm amor por ele? Pois quem ama odiar, ama o Ódio. E amar o Ódio não perfaz o sentido do Amor. Odiar o Amor, e mesmo odiar o Ódio, porém, reside na própria essência do Ódio. O Ódio, portanto, é muito mais lógico que o Amor. Ele tem e faz sentido. Será que ainda tem quem duvide da força do Ódio?

– Sim – Devaneio disse, erguendo a cabeça.

– E por quê?

– Odeio o Amor por buscá-lo; odeio o Amor por não tê-lo. Odeio o Ódio que tenho do Amor. E me odeio por isso tudo.

– Então, sabendo de tudo isto, por que será que ainda busca o Amor? Qual virtude tem o Amor, de que Ódio carece?

– Esperança.

Marcus Vinicius Pilleggi

7 comentários sobre “Amortalidade

  1. Vim aqui dar uma olhada no seu blog e procurei por algo escrito por vc. Gostei muito. Esse conto foi o único que li, mas adorei. Quando acabarem minhas provas eu leio mais! Ah, vou indicá-lo pra minha irmã! Beijão enorme, Má

  2. Graças a Esperança que há no Amor conseguimos continuar procurando por ele, mesmo que o Ódio insista em nos perseguir; porém o que nos faz mais fortes contra ele é saber que na vida sempre vai existir a quem amar verdadeiramente.

    Belíssimo texto 😉

  3. O que dizer de um texto tão bem escrito? Denso, mas ao mesmo tempo a leitura flui. Adorei, mas sou MUITO suspeita…

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