Bem-vindo a Ithildin. Esse texto é uma resposta ao artigo A Verdadeira Inocência dos Contos de Fadas, leia aqui.
E As Crônicas de Nárnia – Viagem do Peregrino da Alvorada (2010) chega nas telonas nipônicas que, aliás, acabei de ver. Após o fiasco na bilheteria do segundo filme da Disney, O Príncipe Caspian (2008), a terceira adaptação da série do irlandês C.S. Lewis foi distribuída pela Twentieth Century Fox e, lógico, seguindo porcamente a modinha hollywoodiana da estereoscopia 3D. Podem me jogar as pedras, mas ainda está para sair um filme em 3D que realmente não só aproveite essa tecnologia com primor, como também concilie um bom enredo (sim, fãs de Avatar, desistam: cinema não é só tecno-bla-bla-bla, tem que ter uma boa história).
Apesar dos pesares, o lançamento do filme é oportuno para retraçar umas discussões igualmente velhas aqui no Ao Sugo sobre o gênero da Literatura Fantástica, sendo este um post que dialoga diretamente com o nosso clássico A Verdadeira Inocência dos Contos de Fadas. Falemos então de Nárnia, da moral da história (se é que deve ter alguma moral) e se histórias de fadas é coisa de criança. Vale a pena então dizer que esse texto é não apenas para os entusiastas do gênero da Fantasia, como também para todas aquelas pobres almas que repudiam elfos, fadas, duendes, dragões, unicórnios e sabe lá quantas mais terras mágicas.

Apesar do termo “encantado” ser bastante equivocado para categorizar essas realidades não facilmente acessíveis a nós, Nárnia é um mundo “mágico” habitado por criaturas “fantásticas” como animais falantes, faunos, centauros, dragões e sabe lá mais o que, nos oferecendo um alento à nossa chata realidade. Contudo, ao contrário da idéia bastante elegante de Neil Gaiman de que estes mundos diferentes são criados pelas nossas projeções e nossos sonhos, Nárnia tem em seu mito de criação a presença um deus único, piedoso e onipresente, o enorme leão dourado Aslam. Para além da “moral da história”, C.S. Lewis injetava em sua “História de Fadas” um eixo cristão já muito discutido por muita gente importante como o próprio Gaiman e Philip Pullmann.
Publicados entre 1950 e 1956, os 7 livros que contam as aventuras em Nárnia saíram no mundo todo e em vários formatos. Aqui no Japão saíram edições para adultos e crianças, com mais ilustrações, capas diferentes, formatos, etc, mas a edição que li em 2006 foi o tijolo da Martins Fontes de 752 páginas. Confesso que ao contrário do que ocorreu com o Senhor dos Anéis (leitura obrigatória para os nerds quando já muito novos), meu interesse pela obra de C.S. Lewis se deu pelo filme da Disney, As Crônicas de Nárnia – O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa (2005). Apesar da crítica que ouvi nos meus círculos internos, encontrei neste filme e neste livro uma das coisas mais valorizo na Literatura Fantástica, a capacidade de apresentar um mundo fantástico embaixo dos vossos narizes.

Tudo começou há muito tempo, quando em O Sobrinho do Mago (1954) surgiu o leão (que não é leão) Aslam e criou o Verbo (que não é verbo). Lembra do primeiro filme, quando as crianças Pevensie são obrigadas a morar na casa de um tio maluco por causa da guerra? Pois bem, aquele tio maluco foi o primeiro a visitar junto com sua amiga Polly a terra encantada de Nárnia. Apesar de ser um prequel, neste livro descobrimos que existem algumas portas que conectam a nossa realidade à Nárnia, além da presença de Aslam como entidade divina máxima, narrando o ato da criação e dotando alguns animais da capacidade da fala.
É interessante notar que os livros que mais achei interessantes são O Leão, a Feiticeira e o Guarda Roupa (1950), O Sobrinho do Mago (1954) e A Última Batalha (1956), narrando justamente a origem de Nárnia, a apresentação dos personagens principais e o encerramento/fim de Nárnia. Com algumas exceções de O Cavalo e seu Menino (1954), é possível entender as Crônicas estruturadas como 1) o encontro da nossa realidade com Nárnia, 2) a aventura principal no universo de Aslam, sua resolução e por fim, 3) o retorno ao nosso mundo, sendo que durante toda essa trajetória os personagens se deparam não só com criaturas fantásticas e cenários maravilhosos, mas também a uma poderosa e polêmica potência moralizante.

Alusões diretas ao cristianismo e às parábolas bíblicas são constantes, fortemente criticadas por autores de peso como Philip Pullmann que escreveu a trilogia His Dark Materials como um mundo governado por um estado religioso opressor, o Magistrado. Todavia, uma das críticas mais pesadas às Crônicas e também feita por Neil Gaiman é quanto ao desdobramento das ações de Susan Pevensie, antes princesa de Nárnia e que, ao crescer, se corrompe ao mundo da vaidade e perde assim sua “pureza”, sendo banida do mundo encantado para sempre. Como uma provocação tardia ao que acontece com Susan, vale a pena ler o conto perturbador “The Problem of Susan”, em Fragile Things (2006) de Neil Gaiman.
Quanto aos filmes lançados para o cinema (sendo que estou desconsiderando a mini-série da televisão britânica), reconheço que merecem artigos em separado no Ao Sugo. Todavia, considero pertinente dizer que, na minha opinião, foram filmes lançados tardiamente e vendidos em um período bastante inoportuno no background das produções de Hollywood na década passada. Após o sucesso da franquia O Senhor dos Anéis pela New Line (e até mesmo Harry Potter pela Warner), a aposta da Disney em colocar as Crônicas no rol dos blockbusters de grandes batalhas épicas com milhares de soldados e efeitos especiais fantásticos acabaram gerando comparações inevitáveis, perdendo-se várias coisas legais da obra no meio do caminho. Vale a pena dizer que C.S. Lewis fazia parte do grupo de literatura Inklings juntamente com nada mais nada menos que J.R.R. Tolkien, sabendo-se hoje em dia que trocavam cartas.

Coisa de criança
Convém fazer uma observação sobre tudo o que está ligado a este gênero da literatura há muito criticado e relegado às crianças ou adultos não-crescidos. Como já disse Tolkien em Sobre Histórias de Fadas (1964) e outros expoentes do gênero, quase todos os termos usados para descrever as histórias sobre estas realidades diversas a nossa são repletos de problemas, a saber: “fadas”, “contos de fadas”, lugares “encantados”, “mágicos”, a própria definição do que é “magia” e do que é “fantástico”, narrativas que sempre estiveram presentes desde que a gente se entende por gente e, principalmente, entre nós adultos. Abre a Bíblia, vai estudar Mitologia e não me encha a paciência. Apesar de não trazer esta discussão para o presente artigo, vale reter que o teor destas histórias de fadas mudou historicamente assim como mudaram alguns valores vigentes na “sociedade ocidental”.
Rousseau bem escreveu sobre a mudança da percepção da “criança” como uma pessoa em formação e em um estado bastante particular, o de “não-adulto”. Nesta condição, a criança estaria ainda apegada a determinados valores que não lhe foram incutidos pela vivencia em sociedade, seja sobre a tal da “inocência”, da “bondade”, etc. Esse caráter foi historicamente construído e ligado facilmente até à própria ilusão da filosofia ocidental do “bom selvagem”, destituído de desigualdades e por aí vai. Isso acabou sendo refletido no mundo das histórias fantásticas, em especial da literatura voltada para estas pessoas em condição liminar, a de “criança”, agora carente de um entretenimento específico para sua idade.

“Pai” da Literatura Infantil, o francês Charles Perrault ficou conhecido em Histórias ou contos do tempo passado com moralidades (1697) por atenuar as histórias fantásticas a serem lidas para as crianças, como a clássica Chapeuzinho Vermelho. Conto medieval francês, a versão original tinha como elementos uma Vovozinha que é morta pelo Lobo, fatiada e servida com vinho para a Chapeuzinho quando chega em seu destino… isso porque estou descartando as partes com sexo. É. Para um Perrault de mil seiscentos e bolinha isso não parecia muito adequado para a molecada, limando então todos os elementos de horror e do macabro destas aventuras.
Com esse movimento de “adaptação” das Histórias de Fadas levado à toque de carga pelos Grimm e por Andersen, gradualmente tais contos saíam assim do mundo adulto para ser propagado e apreciado pelos “baixinhos”. Junto com a taxação de “coisa de criança” pelo main stream, quando apreciadas por adultos as Histórias de Fadas caíram até no mundo maluco e descontrolado das patologias de desordem mental. Escapismo é pouco. Que o diga Charles Dogdson, acusado até hoje de velho pedófilo e maluco por escrever as histórias de Alice. E como eu já disse antes, pobre Alice.
De certa forma As Crônicas de Nárnia não fogem dessa chave perraultiana, uma vez que o autor propõe nos livros um conteúdo moralizante cristão, desde o mito da criação/ gênese até a “trajetória do herói” dos personagens principais da série. Na saga, apesar da repetição de alguns elementos e gatilhos nas aventuras, todos os personagens passam por provações morais que, dependendo das decisões tomadas, possuem ou não a possibilidade de morar nas terras de Aslam, alusão imediata ao Paraíso cristão para onde os crentes, nobres e livres de pecados vão. Eustáquio passa de cético a crente em Nárnia, tendo seu lugar garantido. Já Susan Pevensie se perverte no mundo da vaidade e no ato de passar batom vira mulher… É Susan, não foi desta vez.

Coisa de gente grande
Antes de finalizar a discussão, vale a pena ressaltar um ponto que estamos carecas de falar aqui no Ao Sugo. Já ouvi inúmeras vezes que sou entusiasta do gênero fantástico, algumas vezes sentindo um ligeiro toque de escárnio, como se gostar deste gênero me colocasse numa situação… menos adulta do que os meus interlocutores. Aí fica a mensagem – mais uma vez – para os que ficam nesse papo-furado autista de escapismo infantil, em especial sobre as morais da história e dos conteúdos macabros que assustam as pobres criancinhas.
Como pensa Neil Gaiman sobre as histórias de fadas e sua proximidade com vilões terríveis e cruéis, as crianças que lêem, escutam ou assistem a essas narrativas geralmente já sabem de início que o assustador e o perigo estão sempre lá, devendo então ser ultrapassados. Como ele mesmo diz ao citar G.K. Chesterton, quando crianças nós acreditamos na capacidade do herói da história chegar ao fim da aventura ileso, sendo que o que realmente interessa é o meio do caminho, existindo então espaço para o flerte com o horror nestas mesmas histórias. Ao acreditar no poder etéreo da educação da criança por meio do “conto de fadas” bonzinho e moralizante é insultar a inteligência da criança, além de consistir numa máquina que perpetua essa asneira de que história de fada é pra criança. Sejamos justos: as crianças não são tão estúpidas assim, seu estúpido.

Já o cineasta Guillermo Del Toro enfatiza que o espaço das histórias de fadas com uma pitada de horror tem a singular capacidade de cutucar as nossas mais íntimas emoções, forçando os personagens principais a serem “mais humanos” o tempo todo. Ciente de que é uma visão romântica do gênero fantástico, Del Toro aponta o mais importante, que é de podermos, neste momento de suspensão, entrar em contato com discussões filosóficas mais profundas. E isso vale mais para gente grande do que gente pequena. Como já dito acima, a postura anti-cética de condenar o mundo fantástico como entretenimento “para crianças” é uma invenção adulta mais recente do que imaginamos, sendo interessante pensar nessa questão toda de modo crítico.
Para encerrar, a magia de As Crônicas de Nárnia está no guarda roupa, no poste de luz no meio do bosque ou na xícara de chá com o Sr. Tumnus, na capacidade de trazer uma realidade que, ok, é muito diferente da nossa, contudo, nada distante. Está na chance que temos num dia qualquer, ao abrir o guarda roupa durante a manhã, de poder entrar em outro mundo, no mundo do invisível que no momento (e apenas no momento) não estamos vendo. Está aí o que considero uma característica presente nas melhores histórias de fadas. E mais uma vez, isso não é só para criança, mas é para gente grande também. Vê se cresce.
Victor Hugo, aguardando a luta entre o Unicórnio e o Leão
Mais um texto brilhante e o último parágrafo me fez sorrir, por concordar com cada palavra.
Vi os 3 filmes de Nárnia, mas ainda não fiquei convencida. O 3D utilizado no último é uma piada, nada acrescentou ao filme.
Del Toro é um cara que aprecio demais, adoro os trabalhos dele e Neil Gaiman é genial. E você usou todas as referências perfeitas de sempre.
Espero que os filmes continuem saindo e melhorando, desta vez pelo menos tivemos sangue[o que nunca aconteceria com a Disney].
Excelente texto do aprendiz de Sith (ainda, será?)! Nunca me animei de ler e assistir esse material de Nárnia e, acredito, ainda vai demorar um pouco para ter essa coragem e mesmo o ânimo. Não considero “algo infantil”, longe disso. Só não consigo sentir uma verdadeira aproximação com o tema, empatia mesmo. Li O Senhor dos Anéis há uns quinze anos atrás e também não me empolgou. Acho que esse moralismo barato (em minha opinião) me faz desanimar demais com o gênero da literatura de fantasia. Confesso que conheço pouco e por isso é uma típica opinião baseada em uma “amostra reduzida”hehehe
Mas “soltar a mente” através da boa literatura (seja de Ficção Científica, Histórica ou de Fantasia) é o que importa!
É, fiquei digerindo aqui minha diplomacia no comentário anterior, mas a verdade deve ser dita, ou no caso escrita: “esse negócio” de Fantasia não tá com nada mesmo. Fantasia era um Programa do SBT que era apresentado pela Filósofa Carla Perez, ex-É o Tchan!!! O resto é fifização mesmo!!!
Eu realmente gostaria que nada da Fantasia fosse levada tão a sério.
Parece que é necessário que se explique o porque de algumas histórias tem moral. No entanto não são carecidas delas; porque hoje nenhuma criança, muito menos adultos, ligam para o que isso significa.
Pra mim a Fantasia é pura; é, simplesmente, um lugar que existe para quem sabe se introduzir no mundo fantástico e consegue imaginar belamente, seja com as letras gravadas no papel ou diálogos em cenas, e ainda mais pela própria imaginação, sem precisar de algo que os faça fantasiar.
Muito bom texto ^^
Bela discussão sobre Fantasia e contos de fadas, principalmente por não ter ido para o lado da psicanálise (ufa!).
Acho as histórias de fantasia e contos de fadas ótimos, não só para crianças, mas todas as pessoas. A leitura e interpretação são diferentes, afinal o fim do Nárnia é bem complexo ao meu ver que nem todo os adultos entenderiam.
Os livros do Philip Pullmann eu já não gostei, acho que criei uma expectativa diferente no primeiro e segundo livros.
No geral achar que contos de fadas são para crianças é desmerecer a qualidade da literatura.
abraços
Olá Ernesto,
Tudo bem? Então, “achar que contos de fadas são para crianças é desmerecer a qualidade da literatura” falou e disse. Eu nem tenho como argumentar com isso, ahah. Fico feliz que tenha gostado. Esta seção, Ithildin, é de longe a minha favorita do Ao Sugo, seguida do Portão de Tannhauser, aí fico feliz que tenha curtido.
Abração,
Victor Hugo