Desde que comecei a ler histórias em quadrinhos (carinhosamente denominadas simplesmente “HQs” ou gibis) sempre tive referência de duas “eras” nas HQs: a Era de Ouro e a Era de Prata. É claro, estou falando dos quadrinhos estadunidenses de super heróis com roupas muitas vezes berrantes e geralmente com algum percalço trágico nas vidas particulares que os levam a vestir, em geral, roupas pouco ou nada usuais no nosso sagrado e cotidiano dia a dia. Mas vamos lá. Em geral quem já leu Batman ou Superman sabe que ambos são personagens nascidos na chamada “Grande Depressão”, momento no qual a economia dos Estados Unidos encontrava-se sob fortíssima recessão e com cidades com pessoas desempregadas com poucas esperanças de melhoras e obtenção de empregos estáveis e com remuneração digna para si próprias e para suas famílias.
E por falar em esperança, o Superman é publicado pela primeira vez no ano de 1938. Como personagem arquetípico, o Superman pode evocar muita coisa e uma delas é a trajetória de um “imigrante”, alguém vindo de um lugar muito distante e com a promessa de reiniciar sua vida numa terra com chances de crescimento. É claro, essa é uma forma de interpretar o mito do Superman, uma forma, inclusive, bem “solta”, afinal, Kal – El quando enviado a Terra por Jor – El e Lara era apenas um bebê, caso muito diferente de milhares de imigrantes adultos que se destinaram aos Estados Unidos com a expectativa de “recomeçar” a vida numa terra de prosperidade e trabalho. Certo! Mas o que quero dizer é que o Superman inaugura a Era de Ouro das HQs nos Estados Unidos (não que não fossem publicadas HQs na terra do Tio Sam, mas a correria em torno de Action Comics foi, de certa forma, sem precedentes para a época), Era de Ouro que se dispunha a revitalizar a esperança e de quebra (re) apresentando um Salvador, alguém disposto a lutar pelas pessoas dentro do modo de vida americano. Inclusive, o próprio uniforme do Superman é a bandeira americana (uma moda entre super heróis, veja o caso da Wonder Woman, Spider Man, o Captain America, the Shield, etc).
Mas enquanto o Superman é o “lado luminoso da Força” (perdoem-me o trocadilho), havia ainda assim o lado sombrio, o lugar no qual habitava os medos cotidianos, onde imperava o medo e residia os efeitos perversos de uma crise econômica e financeira: a violência urbana que tomava as vidas e propriedades das pessoas, que as fazia desejar ficar em casa por medo. E para “confrontar” esse medo que foi publicado na revista Detective Comics, em 1939, o Batman, diferentemente do Superman, um homem comum, embora muito rico, que devido a trágica morte de seus pais, ainda quando criança, decidiu dedicar sua vida a combater o crime que assolava sua cidade, Gotham City. Esse Batman era violento e matava, respondia por uma ânsia de controle social sobre a violência de uma maneira veloz e sem os percalços da Justiça. Batman, ao mesmo tempo em que era um Salvador, também era um “Antisalvador”, alguém que não pensaria duas vezes em enquadrar quem quer que fosse à sua “justiça”. Só era visto a noite e quem o visse borraria as calças de medo. Algo bem diferente de se ver o Superman. Era capaz de você até sair saltando, em seu início de carreira, ou partindo “para o alto e avante”.
Batman e Superman eram duas forças opostas. E a partir daí todo um leque dos mais diversos personagens surgiram. Digamos que pendendo ora para um modelo “Superman” ora para um modelo “Batman”, mas acredito que o modelo “Superman” foi o vencedor nesse quesito de disputa, vitória que perpassou a Era de Prata, já na década de 1960.
As HQs passaram por forte perseguição nos anos 40 devido a “seduzirem os inocentes”, imaginem, uma personagem chamada Wonder Woman com poderes e força superiores a muitos homens e, ainda por cima, vinda de uma ilha em que havia apenas mulheres. Era demais para o machismo da época. A Wonder Woman não foi a única personagem perseguida na época. Isso se alastrou para diversos gêneros de HQs (de super heróis a de terror) e essa “caça as bruxas” quase degolou a indústria de HQs. Mas uma luz surgiu no fim do túnel, ou melhor, um flash. Com a “re-formatação” do personagem Flash (originalmente da Era de Ouro) num formato mais “ficção científica” e com a também “re-formatação” do Lanterna Verde (praticamente outro personagem), inaugura-se a Era de Prata. Não é possível esquecer a revolução feita pela Marvel com personagens como Spider Man e X – Men.
Muito humanos em seus conflitos internos e externos e próximos da realidade de muitos leitores adolescentes que se sentiam de alguma forma excluídos socialmente. Os personagens são essencialmente esperançosos, embora tenham em suas biografias diversas tragédias, vivem e tem coadjuvantes que experenciam diversas formas de discriminação. Vivendo num mundo em que os direitos civis estavam ganhando cada vez mais espaço no debate público, essas HQs da Marvel tornaram-se parte fundamental da história das histórias em quadrinhos não apenas nos Estados Unidos, mas também no mundo. A DC não ficou para trás. A série Arqueiro Verde & Lanterna Verde até hoje é lembrada pelos fãs como um marco na forma como temas como racismo, drogas e sexo foram incorporados às HQs.
Mas as eras passam. E chegamos ao que pode ser denominada como a “Era de Bronze”. Os títulos de HQs, os melhores vistos de forma retrospectiva, foram sendo “adultizados” na década de 1980. E quando digo que por se tornarem mais adultos, digo que o amadurecimento foi, em minha opinião, a maior revolução das HQs. Alguns títulos foram responsáveis por essa revolução, em minha opinião: Batman – The Dark Knight Return’s, Watchmen, Batman – The Year One, The Swamp Thing, Sandman e Daredevil. E três nomes foram os responsáveis por essa revolução: Frank Miller, Alan Moore e Neil Gaiman. Vou contar como essa revolução mexeu em minha vida.
Me lembro até hoje do dia que fui a banca procurar algum gibi no qual Batman e Superman estivessem, estava na verdade procurando algum gibi dos “Superamigos”. E imaginem minha surpresa e estarrecedora visão da capa da versão da Editora Abril de “Batman – o Cavaleiro das Trevas”: o Batman vestindo um tipo de armadura e esmurrando o Superman. Não conseguia acreditar no que via. Quando abri a revista na Banca e vi a cena do Batman acertando o queixo do Superman com uma bota cheia de pregos senti que o que considerava como infância tinha acabado. Ou ao menos algo muito sério havia sido incorporado e nada mais seria como antes.
De certa forma essa história reflete o fim da era de “Superamigos” da Era de Prata. Os super heróis se tornaram “mais reais” e, principalmente, mais amargos graças a Frank Miller e Alan Moore. E o que se sucedeu ao período da Era de Prata e Bronze? O fim da Wildstorm pode representar um fim de ciclo nas Histórias em Quadrinhos dos anos 1990 para cá? Mas essa conversa fica para o próximo post.
Ben Hazrael, especial para o Ao Sugo
Leia mais artigos de Ben hazrael sobre HQs na série HQ e Política:
As Histórias em Quadrinhos e a Política, parte 1: analisando Y – O Último Homem
As Histórias em Quadrinhos e a Política, parte 2: Authority
As Histórias em Quadrinhos e a Política, Parte 3: Batman – O Cavaleiro das Trevas
Excelente texto!
^^
Shisuii
Sou uma leitora frustrada de HQ. Não li as que eu realmente gostaria de ter lido e não entendo suficiente do assunto.
Mas acho que conforme os anos foram passando os personagens tornaram-se cada vez mais “sombrios” por não ter essa perseguição do que era bom ou mal exemplo como na década de 30-40.
A liberdade que se teve pra transformar as histórias em críticas à sociedade (pelo menos é o que eu noto)veio através do que eles não podiam mostrar na época em que foram criadas.
Achei interessante o texto e seria legal ler outro do mesmo assunto ^^
Fiquei arrepiada. Sou muito fan do Batman e a essa HQ em particular, dele dando uma boa surra no vermelhinho (antes do Chapolim existir) também mexeu comigo.
Parabéns, como sempre, ótimos textos por aqui.