Preto e branco, diálogos realistas e pessoas verossímeis. Esses são os elementos fundamentais de Clerks (que no Brasil veio com o título O Balconista), o filme que levou Kevin Smith ao estrelato como um dos diretores alternativos (medo desta palavra, sempre deve-se usá-la com a mais devida cautela) mais bem-recebidos por público e crítica. O filme teve o modesto orçamento de 27,5 mil dólares e foi rodado na loja de conveniência onde o próprio Smith trabalhava. Esse dinheiro ele conseguiu economizando, com empréstimos e vendendo sua preciosa coleção de quadrinhos. Além disso, nenhum dos atores é profissional. O cara realmente botou o dele na reta e, mesmo assim, conseguiu algo fenomenal.
O filme mostra um dia na vida de Dante, atendente de uma loja de conveniências convocado a trabalhar num sábado, e Randal, empregado da vídeo-locadora agregada. Ambos trabalham na Quick Stop Groceries e levam uma vida de poucas ambições. O desgosto pelas suas posições faz com que os dois amigos de New Jersey tomem decisões não-ortodoxas em relação ao atendimento e administração dos locais, à medida que vão encontrando pessoas, clientes e amigos, cada um diferente do anterior. Dante, a propósito, está particularmente aborrecido por ter de ir trabalhar no seu dia de folga. Ainda, ambos aproveitam o tempo para discutir sobre vários temas: cinema, sexo, sociedade, cultura. Tudo, é claro, com toques refinados de um ácido humor-negro.
Na época em que foi lançado, 1994, estes temas eram ainda extremamente incomuns, para não dizer mal-vistos no universo da cinematografia. Neste sentido, podemos afirmar que Kevin Smith foi um dos pioneiros no cinema da crítica à cultura pop adolescente dos EUA. Podemos até dizer, acho eu, que Smith tem sua parcela de culpa nos inúmeros besteiróis americanos atuais. Não que eles sejam congruentes em linha de pensamento, mas os filmes de Smith, preconizados por Clerks, abriu caminho e mentes para a tolerância destes temas que até hoje batem de frente com tabus e geram polêmica; o espírito anárquico de Clerks contribuiu como uma machadada bem dada no tronco do conservadorismo.
Algo de interessante é que os personagens centrais, aos seus 20 e poucos anos, vêem a vida como ainda no começo, com a leve noção de que ainda há muita coisa para ser e fazer. O problema é a sensação incômoda de certas cobranças ao exemplo de “você precisa decidir o que vai fazer” como se, aos 20 e poucos anos, sua vida estivesse no fim e o caminho até aquele momento fosse uma estrada de futilidades. A idéia chicoteada muitas vezes pelas pessoas em que mais confiamos, obrigando-nos a “tomar rumo” como se nada na vida importasse além de um bom emprego, uma família estável e uma casinha com cerquinhas brancas. Um pisoteio naquelas coisinhas que realmente importam, pequenas demais para se defenderem ou serem notadas, a não ser por aqueles que sabem onde e o que procurar. E mais importante ainda: por que procurar. Este tema angustioso e crítico é retomado de forma muito mais evidente em Clerks 2, um lançamento muito mais recente e menos bem recebido, infelizmente, porque possivelmente muitos não entenderam que o que Kevin Smith escreve é um pouco mais que piadas de sexo, cinema e cultura pop estadunidense.
Bem, para não perder o fio da meada, a propósito, este é o primeiro filme que originou o que Smith chama de “Askewverse”, o “universo alternativo” onde se passa a maioria de seus filmes e onde residem seus personagens mais ilustres, como a dupla sempre presente Jay e Silent Bob (interpretado pelo próprio Smith). O tempo passou e Askewverse tornou-se o nome da produtora de Kevin Smith. Outro filme que foi bem recebido pela crítica e que o diretor ambienta neste universo alternativo, uma gota de ficção no mar da realidade, é o aclamado Procura-se Amy.
Enfim, Clerks não é nada presunçoso e, por isso, é bem verdadeiro. Vale a pena pelos diálogos, principalmente, e para mostrar que Kevin Smith, quando veio, veio com tudo. Cada minuto do filme é bem aproveitado, seja pela crítica, seja pelas piadas. Acho que isso é tudo e, lembrem-se, não é porque eles o servem que gostam de você.
Marcus Vinicius Pilleggi