A Verdadeira Inocência dos Contos de Fadas

Bem-vindo a Ithildin. Esse texto tem uma resposta em Falando sobre Histórias de Fadas, leia aqui.

É raro conhecer alguém que saiba com um pouco mais de exatidão em que consiste um Conto de Fadas. E muitos ainda relegam sua importância. E por “importância” eu não me refiro à ideia de que Contos de Fadas trazem moralidades implícitas, mas na verdade de que eles, por serem fantasia, já ocupam um lugar verdadeiramente importante na formação do intelecto de uma pessoa.

Quando falamos de Contos de Fadas, a noção mais básica e instintiva usada como respaldo pela maioria é a noção de fábula; contudo, embora compartilhem de muitos elementos, eles de modo algum resumem todo o gênero. Animais falantes e “morais” são comuns às fábulas; entretanto, são características que, pasmem, nem todos os Contos de Fadas possuem.

Contos de Fadas, por definição simples, são narrativas ficcionais que fulguram elementos e personagens folclóricos, como fadas, elfos, gigantes e suas habilidades encantadas. Ao contrário de lendas ou mitos, possuem muito poucas ou nenhuma referência histórica ou religiosa da história humana; notavelmente, a maioria dos Contos de Fadas se passa em um espaço-tempo não necessariamente muito bem definido – em parte o que gerou a famosa expressão do “Era uma vez”. Além disso, os Contos ainda são muito associados à presença de mágica e animais falantes, muitas vezes mais do que a presença efetiva de fadas. J.R.R. Tolkien, por exemplo, concorda que as fadas deveriam ser deixadas de lado no termo, definindo “contos de fadas” como sendo somente as aventuras dos homens em Faërie, a terra das fadas, elfos, anões e outras maravilhas.

Mesmo que os Contos de Fadas não tenham uma história muito bem definida, é razoável deduzir que sua existência data de muitos séculos atrás, de acordo com muitos folcloristas, até porque a capacidade e necessidade dos homens em imaginar é praticamente instintiva, para superar as próprias limitações. Tradicionalmente um costume oral, ligado à ideia de simplesmente “narrar” ou até mesmo relacionado com preceitos filosóficos, como no taoismo, os Contos foram primeiro assim chamados por Madame d’Aulnoy, escritora francesa do século 17 que cunhou o termo contes de fée (literalmente “contos de fadas” em francês) para tematizar o estilo daquilo que escrevia. Antes disso, o comum termo que designava esse tipo de conto na Alemanha, por exemplo, era Märchen, simplesmente “conto” na língua germânica. É pertinente aqui abrir um parêntese: a palavra fada vem do latim fatum, que significa destino. A essência das fadas é, então, de criaturas que interferem no destino por meio de sua presença encantada; esse destino não necessariamente precisa ser do personagem (embora geralmente seja), mas simplesmente da narrativa. A própria presença da fada muda as coisas; por conseguinte, muda o destino.

Junto com os famosos Irmãos Grimm, que viveram no século 18, Madame d’Aulnoy tem parte na “culpa” da associação de Contos de Fadas às crianças e ao universo infantil. Antigamente, o público adulto desse estilo era tão grande, senão maior, que o de crianças. A sua difusão para crianças começou por meio dos précieuses (francês para preciosos), contos de fadas muito comuns na Renascença Francesa e que eram dirigidos à nobreza feminina, mas que servas ou outras mulheres de classe baixa também contavam às crianças. Desse modo, a popularização dos Contos entre as crianças aumentou. Muitos dos escritores dos preciosos começaram, portanto, a escrever com base no público infantil, ou a modificar outros contos para se adequar a esse universo. Os próprios Irmãos Grimm dedicaram-se muito a esse ofício, sendo que uma das suas principais cruzadas foi a eliminação de elementos sexuais dos antigos Contos de Fadas. Eles compilaram sua obra na forma de um livro chamado Children’s and Household Tales (algo que poderia ser traduzido como “Contos Domésticos e para Crianças“), demonstrando qual era, de fato, seu público-alvo.

Em tempos anteriores, os Contos de Fadas eram também voltados para adultos por possuírem aspectos frequentemente muito trágicos e sombrios, com passagens perturbadoras em seus enredos; predicados que dificilmente têm o apreço de crianças. Com a mudança de muitos contos e a cunhagem doutros ainda voltados ao público infantil, os Contos adquiriram uma característica comumente alegre e esperançosa, com um otimismo ímpar; isso gerou a associação ainda presente atualmente do “final dos contos de fadas”, adjetivando uma característica aos Contos de Fadas de “final feliz” que nem sempre condizia com o que costumava acontecer, mesmo que o elemento “esperança” fosse presente. É importante ressaltar que a presença da esperança não implica, necessariamente, em um final feliz. Walt Disney e seu estrondoso estúdio contribuíram ainda mais para a disseminação desse tipo de visão da significância dos Contos e seus finais felizes.

Foi só nos últimos tempos que foi possível ver uma breve retomada à noção original de o que são os Contos de Fadas; e muitos autores os utilizam Contos – e a fantasia propriamente dita, direcionando-a para adultos e crianças. Às vezes até mesmo só para adultos, por muitas crianças ainda não terem o refinamento imaginativo ou cultural exigido por vários elementos da literatura, cinema ou outro tipo de mídia artística. Um dos maiores dissidentes das características dos Contos que começaram a ser difundidas no século 17 e 18 foi J.R.R. Tolkien em sua obra maior, que abrange publicações como O Silmarillion, Os Contos Inacabados e The Children of Húrin, além, é claro, da extensa quantidade de contos, ou melhor, Contos de Fadas, presentes na série History of Middle-earth (conhecida pelo fandom tolkieniano por HoME Series). Ironicamente, as obras tolkienianas de maior sucesso foram justamente aquelas que se encaixavam nas características disseminadas pelos contos “infantilizados”. O Hobbit e O Senhor dos Anéis possuem um elemento otimista e moralista que ajudou a garantir o seu imenso sucesso no século XX (especialmente durante a década de 1960 com o movimento hippie) e até agora, enquanto os textos muito mais sombrios que compõem O Silmarillion, Os Contos Inacabados etc. ainda permanecem relativamente mais fracos e desconhecidos, em termos de público, às suas obras mais famosas. Tolkien, ainda, era um dos mais ferrenhos defensores da vontade de contar uma história pelo simples motivo de “contar uma história”, sem preocupar-se com alegorias (coisa que detestava) ou moralidades.

O final do século XX, entretanto, trouxe outras obras que buscavam se separar do lugar-comum. Muitos filmes fantásticos da década de 1980, por exemplo, apresentavam elementos que poderiam ser apreciados tanto por crianças quanto por adultos. Essa cultura diferenciada ainda é louvada por muitos indivíduos dessa geração, que ainda se divertem assistindo aos mesmos filmes, desta vez com olhos mais críticos e até mesmo, em alguns casos, cínicos. Os “inocentes” contos de fadas não são mais tão inocentes assim.

Para complementar, autores como Phillip Pullman e Neil Gaiman fazem parte de um grupo que retoma e intensifica os Contos de Fadas (e contos fantásticos em geral) como algo que não só pode, como deve ser apreciado tanto por adultos quanto crianças; sendo apenas vistos com olhos diferentes. Além disso, este tipo de obra releva a noção da simples vontade de “narrar”, sem se preocupar, necessariamente, com a utilidade explícita e imediata de suas obras. Para nossa sorte, nos últimos anos foi possível notar uma nova aproximação da verdadeira natureza dos Contos de Fadas e sua “inocência” repleta de sombras, problemas, dificuldades, tristezas e até tragédias, deixando de lado o discurso infantilizante e moralista. Isso faz com que seja, em essência, um tipo de trabalho muito mais sincero, preocupado mais com a qualidade do enredo e da narrativa do que com o encaixe pré-conceituado a determinado público.

Depois de um hiato de praticamente três séculos, os Contos de Fadas estão, finalmente, retornando à nossa cultura, ao nosso aprendizado e, principalmente e o mais importante, aos nossos sonhos. Afinal, talvez a melhor coisa da Fantasia e, por consequência, dos Contos de Fadas, é que eles não precisam ter razão de ser; apenas são.

Marcus Vinicius Pilleggi, do Portal da Arcádia

25 comentários sobre “A Verdadeira Inocência dos Contos de Fadas

  1. Oie,
    sou o Tsu do contos de rpg do wordpress
    Ae, curti esse texto, tem muita coisa interessante.
    As fadas do Shakespeare do sonho de uma noite de verão são bem sexuaalizadas rs…ehehehee…ninfetas!

    O Neil G. no Sandman até reconta alguns contos de fadas neh…a estória da bela adormecida…o principe deu muito mais que um beijo nela rs…se eu bem me lembro é qdo a Rose (acho) está no asilo e as velhinhas (a triade Urd/Skuldy/Beldandy disfarçada) contam como eram as estórias originais dos contos de fadas.

  2. Filósofo, é interessante você ter mencionado o Neil Gaiman e mesmo o RPG; duas coisas que eu e o Victor gostamos muito. Visite o Ao Sugo com freqüência, porque logo eu postarei mais sobre fantasia; mesmo de um ponto de vista mais psicológico.

    A grande verdade é que os Contos de Fadas são estórias com fundo fantástico mas que, nem por isso, são infantis. Até porque a fantasia e a imaginação não é exclusivo da mente da criança.

    Até a vista e obrigado por ler!

    Abraços

  3. Boa Tarde, meu nome é Kelly, tenho 30 anos, pedagoga.
    Sei que existem livros, falando das verdadeiras historias dos contos de Fadas, teria algum nome para me indicar.
    Grata. Kelly.

  4. Kelly, existem alguns livros que tratam de contos de fadas e sua aplicação e mesmo importância até num volume considerável. Entre algumas leituras que nós do Ao Sugo recomendamos estão:
    – “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, de Bruno Bettelheim, pela editora Paz e Terra
    Recomendamos fortemente – “Contos de Fadas”, de Maria Tatar (editora Jorge Zahar)

    Uma reunião de contos do século 19 feita pelo brilhante Ítalo Calvino, o livro chama-se “Contos Fantásticos do Século XIX: o Fantástico Visionário”.

    Como você é pedagoga, eu também recomendo que você leia livros que discutam a importância da fantasia para as pessoas, até mesmo como desenvolvimento do intelecto. Para tanto, recomendo também:
    -“Contos de fadas e realidade psíquica: a importância da fantasia no desenvolvimento”, de Glória Radino, pela editora Casa do Psicólogo – é de linguagem simples e fácil entendimento. Não é brilhante mas vale a pena dar uma olhada.

    Recomendo fortemente “A Interpretação dos Sonhos”, do próprio Freud, onde ele discute a importância da fantasia para a formação do intelecto, inclusive falando como se desenvolve o intelecto.

    É uma boa literatura que dá pra aproveitar. Existem vários autores que discutem contos de fadas, fantasia e sua importância. Não creio que você terá muita dificuldade em ampliar esta bibliografia.

    Agradecemos a leitura

  5. Maravilhosamente delineado. Mas, trata-se de uma pessoa que é sensível e capaz de criar, escrever e descrever o penaamento. Admiro essas obras.
    Parabéns! Não pare, continue a nos iluminar.
    Drª Leila Sara

  6. Oi
    Sou estudante de pedagogia e estou fazendo uma monografia sobre contos de fada e achei o site atraves do google e adorei. Muito obrigada por me ajudarem.

  7. Olá Gisele,

    Fico feliz que em alguma medida pudemos ajudá-la. Gostaria também de convidá-la a visitar todos os outros artigos aqui do Ao Sugo sobre o tema, já que eu e o Marquinhos adoramos discutir quase tudo relacionado ao gênero de Fantasia e tudo mais, rs.

    Mais uma vez, obrigado!

    Victor Hugo

  8. Já visitei este blog. Voltei porque é muito bom. Gosto da dedicação, esmero e criatividade da pessoa em seu trabalho.
    Esta, dentre outras, trata-se de uma qualidade que merece todo o meu respeito e admiração.
    Drª Leila Sara

  9. Olá, tudo bem? Achei o site procurando na realidade sobre a autora Mme.D’Aulnoy, que escreveu alguns contos de fadas… Mas tá muitooo dificil achar alguma coisa sobre ela, e seus contos de fadas… Se vcs puderem me ajudar, serei muito grata.
    Beijão!
    Larissa Kühl

  10. Senhores, descubri o Ao sugo há cerca de duas horas e estou passeando pelos bastidores de Batman,Jazz Fusion,X files,Conan e outros assuntos aoas tenho (ou me surpreendo sentindo) um certo apreço, este blog(?)me prendeu com seu material de leitura afinadíssimo.Dar parabéns seria banal,e a fantasia é contrária a banalidade (ou seria isso resquício de changeling).
    É realmente difícil me fazer falar,visto que não valorizo comunicação via internet,sou antiquista,tímido, uma espécie de Schopenhauer menos genial e menos rico…E como não quero escrever uma matéria, tento fechar dizendo que gosto muito de rpg, Neil Gaiman e contos ‘de fogueira’ por assim dizer.
    Peço um contato verdadeiro aos participantes do blog e desculpa pela minha verborréia literária…

  11. ♥ Olá
    Eu sou Lorena e Achei muito bom!
    Muito criativo e por cima E bem explicado Amei Quando cair isso em trabalho sobre contos de fadas ou amigos eu vou ajudar pq eu quero o melhor para eles!Com isso eles tiram um 10 E muito bem dado
    Parabéns para Marcus Vinicius
    estou muiito feliz ☻

  12. É tão bom ler um artigo ótimo que reúne informação e clareza sobre o assunto tratado, no caso sobre conto de fadas e fantasia, e que eu tenho muito interesse de ler qualquer coisa relacionada.

    Como sempre, tenho só a elogiar =]

    Adorei!

  13. Ótimo texto cara, parabéns! Vale ressaltar também a leitura do livro “Sobre Histórias de Fadas”, m ensaio escrito por Tolkien sobre o tema.

  14. Olá,

    Eu adorei, ficou muito bom.
    Eu adoro livros, e queria saber se tem algum livro que possam me indicar com os contos de fadas sem a psicánalise, eu gostaria de ler as estórias por completo.

    Desde já agradeço..

    1. Olá Izadora,

      Tudo bem? Obrigado pela visita e pelo comentário. Acredito que já deve ter visto, mas a nossa seção Ithildin é dedicada inteira sobre Fantasia, contos de fadas, etc, espero que possa se divertir com estes artigos (e comentar também, rs). O próximo post que você deve ler agora então é o “Falando sobre Histórias de Fadas” aqui no Ao Sugo, pois é uma continuação direta ao texto que você acabou de comentar. O episódio 2 da Rádio Ao Sugo também fala sobre o gênero de Fantasia na literatura no cinema, aí convém ouvir também quando tiver algum tempo.

      Felizmente são muitos os livros sobre o gênero, aí talvez seja interessante adquirir uma edição da Jorge Zahar Editora que saiu há um tempo atrás, grande (um pouco maior que uma filha A4) e de capa vermelha. Nele você encontra os contos em sua versão quase que integral e do lado tem várias análises interessantes para você poder comparar durante a leitura. Essa edição é boa para você começar, além de matar gigantes do castelo numa cajadada só: são vários contos importantes reunidos num só livro.

      É importante ter em mente que de uma forma ou de outra esses contos foram bastante reescritos e alterados conforme a passagem do tempo, não existindo um ou alguns livros que trazem “a versão oficial” ou “a versão original”. Tendo isso em mente, qualquer livro de Contos de Fadas que você ler será interessante. As coletâneas são várias e você pode encontrar nas seções de Literatura Infanto-Juvenil de uma livraria grande. Quando comprar algum destes livros, espero que volte aqui e comente sobre o que está achando da leitura. Esse feedback é importante para nós próprios continuarmos elaborando outros posts e episódios da Rádio Ao Sugo.

      Abração,

      Victor Hugo

  15. Muito obrigado pela dica!!
    Só que eu não conseguir achar o livro será que você poderia me dizer o nome do livro.
    E quero que saiba que eu estou me divertindo com tudo que eu estou lendo, é tudo muito interessante.

    Grata pela atenção!!
    Abração,

    Izadora

    1. Olá mais uma vez Izadora,

      Eu me refiro a este livro aqui, “Contos de Fadas – Edição Comentada e Ilustrada“, mas pelo que estava vendo nas lojas online, está esgotado na Livraria Cultura, mas tem na Livraria Saraiva, Submarino e Travessa, com os preços variando em 79 e 89 reais. É caro, mas vale a pena, pois reune clássicos de vários autores, com os respectivos comentários e é repleto de ilustrações. Um bom chute seria dar uma passeada em sua cidade para ver se encontra em alguma livraria física, pois aí quem sabe encontra até mais barato.

      Agradecemos pela leitura, rs. Como diriam em algumas lojas, “volte sempre”, rs.

      Abração,

      Victor Hugo

      1. Muito obrigado eu venho procurando livros nesse estilo a muito tempo e não teria encontrado sem a sua ajuda…
        Pode ter ser certeza que sempre votarei,rs. Quando a “loja ” é boa o cliente sempre volta,rs.

        Abração,

        Izadora

  16. Muito legal o texto. Até hoje não vi muitas coisas escrita sobre o contos de fadas para adultos, e fiquei pensando em algumas coisas. A ideia de infância é definida por Rousseau no seu livro Emílio, que foi escrito na metade do século 18, antes disso a criança (na Europa) era um pré adulto, mas já existiam contos de fadas? Li um pouco sobre os Grimm e parece que já se contavam histórias fantásticas, provavelmente com o foco no adulto.

    A retomada dos contos para adultos é realmente muito legal, pois também temos imaginação, e ao mesmo tempo, não podemos deixar de pensar em contos elegantes para as crianças.

    Abraços

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