Mirrormask

Era no mínimo razoável deduzir que a união de Neil Gaiman, famoso roteirista de quadrinhos e romancista, mais conhecido no Brasil por Sandman, e Dave McKean, brilhante ilustrador e artista plástico, continuaria a render bons trabalhos. Sempre foi assim, com Sandman, com Mr. Punch, Violent Cases ou outros trabalhos dos dois. Graças à temática de fantasia e de sonhos tão elevada em grau de importância por Gaiman e magnificamente tornada visível por McKean, com Mirrormask não poderia ser diferente. Aqui no Brasil o filme saiu sob o péssimo nome de Máscara da Ilusão; provavelmente porque quem deu o nome não entendeu bulhufas do enredo inteiro. Não bastasse a estória extremamente bem enredada e sensível de Gaiman, McKean transforma a película numa entidade viva e maravilhosa, dando um visual espetacular a cada cena. É como ver, em movimento, uma das artes de Dave McKean: uma pintura viva.

O filme narra uma estória que envolve uma garota chamada Helena, filha de artistas circenses, que deseja apenas ter uma vida normal. A garota, exímia ilustradora (na verdade seus desenhos são rascunhos do próprio McKean), tem uma relação conflituosa com a mãe e adora uma boa fantasia; ela desenha todo um outro mundo, colado na parede de seu quarto. A mãe de Helena adoece misteriosamente e, na noite em que fará uma cirurgia, a menina começa um verdadeiro passeio onírico, uma aventura à lá A Viagem de Chihiro, de Myazaki.

A garota aprende que aquele seu universo onírico (de fato dela, pois é o próprio mundo que ela desenhou e colou na parede) está se auto-destruindo pelas sombras (no melhor exemplo do Nada que destrói Fantasia em A História Sem Fim), já que o equilíbrio foi quebrado quando a filha da Rainha Negra foge para o “mundo real”, tomando lugar de Helena; uma Princesa que nada mais é que o próprio álter-ego de Helena. Para evitar o fenecimento da Rainha Branca e a destruição daquele mundo, Helena precisa da Mirrormask, a Máscara Espelho, um artefato do mundo em que se encontra.

A parte isso tudo, o visual do filme é simplesmente espetacular. Quem conhece as obras de McKean vai sentir como se estivesse dentro de uma delas. Enfim, para quem gosta de viajar, de fantasiar, de sentimentos nostálgicos, Mirrormask é obrigatório. Assistir a essa obra é como realmente andar dentro de um sonho.

Marcus Vinicius Pilleggi

7 comentários sobre “Mirrormask

  1. Olhaí o filme que tu me recomendou!

    Só por ter a palavra rainha, princesa, fantasia, sonho já me deu vontade de assistir.

    Vou correr atrás desse filme =)

  2. O que representava as máscaras no mundo onírico de Helena Campbel?
    Será que alguém pode me responder? Obrigada.

    1. Olá mais uma vez, Isabella,

      Como tinha prometido, venho para falar sobre a idéia das máscaras que você pediu, devendo agradecer pela pergunta. Sua pergunta é boa porque faz a gente pensar, rs, até que tive uma longa conversa sobre sua pergunta com outro amigo, também antropólogo. Para falar de máscaras eu preciso dar um pulo na Antropologia Social, mas já devo pedir desculpas por resumir este assunto de maneira tão tosca. Baseando-se nas idéias da Antropologia Francesa de Marcel Mauss, Lévi-Strauss e os que vieram depois nele nessa linha de pensamento, vale a pena lembrar que as máscaras estão fortemente associadas com a noção de “pessoa” desenvolvida em diversas “culturas” pelo mundo.

      Uma “pessoa” é algo bastante diferente da nossa noção contemporânea de “indivíduo” enquanto ser moral e agente tomador de decisões. Como observado em várias “culturas” (entendendo “Cultura” como sendo o conjunto de várias idéias partilhadas coletivamente), a “pessoa” está atrelada na idéia de papéis sociais que os sujeitos assumem em várias sociedades. É simples, é como numa peça de teatro, em que cada ator interpreta determinado papel que ao todo monta a história, o enredo: em diversas “culturas” existem as “pessoas” que são sujeitos assumindo vários papéis sociais e funções dentro daquelas sociedades. A grande (e mais importante) diferença é que esses “atores” não estão tomando decisões por vontade própria nem mesmo fingindo/interpretando, estando imersos nos valores e símbolos da “cultura” em que está inserido. As decisões que essa “pessoa” assume portanto não são decisões dela mesma, limitadas em papéis que são muitas vezes fundamentais para o funcionamento desta ou daquela sociedade.

      Isso tudo é muito diferente da nossa noção de “Indivíduo” contemporâneo, sendo para alguns antropólogos franceses (em especial Marcel Mauss e seu aluno, Louis Dumont) como talvez um desdobramento da noção de “pessoa“. Enquanto algumas “culturas” desenvolvem a idéia de “pessoa“, a sociedade ocidental de maneira geral teria desenvolvido a duras penas a noção de “Indivíduo” de maneira bastante particular e nada universal. Aqui a gente pensa e toma decisões mediante um leque de opções dados pela nossa “cultura” de maneira diferente das “pessoas“. Pode até lhe parecer estranho ler isso, mas daí que é “errado” por exemplo acreditar que a idéia de “Indíviduo” e do valor “individualidade” são universais: não podemos esperar encontrar essa idéia de “Indivíduo” em outras sociedades como encontramos na nossa, pois cada sociedade pensa isso de maneira diferente. Mas cuidado: existem “pessoas” e papéis sociais na nossa sociedade, ainda como existe “individualidade” nestas outras “culturas”. Nós temos vários papéis durante o dia, o de filho, aluno, pai, trabalhador, amigo, namorado, etc, se alternando o tempo todo. A diferença é que nós pensamos isso apenas de um jeito… diferente, sendo o “Individualismo” uma ideologia dominante nas bandas de cá.

      A máscara pode ser, dizendo de maneira bem rudimentar, como uma personificação da idéia de “pessoa” que o sujeito assume. Ao vestir certa máscara, as roupas e os enfeites vinculados a ela, este sujeito agora está ocupando um papel social bastante específico. Ele não está “interpretando” o papel social como a gente faz aqui no teatro… nestas “culturas“, quando ele veste a máscara, ele literalmente assume um papel e uma função social daquela sociedade, cuja “atuação” é orientada pelos símbolos de sua “cultura“. Ele não pode vestir uma “máscara sagrada de uma entidade e talz” e sair fazendo o que bem entende, pois agora está nele mesmo esta entidade.

      Outro aluno de Marcel Mauss iria mais longe e nos mostraria em “A Via das Máscaras” (1979) que é possível compreender inclusive o pensamento humano através do estudo das máscaras. Para Lévi-Strauss, uma máscara sozinha não possui significado nenhum, dependendo muito da “cultura” em que está localizada e sendo utilizada. É aquela coisa, a gente só entende o que esta máscara/pessoa significa se comparamos com outra máscara/pessoa daquela mesma sociedade.

      As máscaras de Helena mostram que, ao usá-las, ela está assumindo e adentrando aos diversos papéis que existem dentro daquele mundo onírico. Não é só uma “interpretação de papéis” como no teatro: ela não veste uma máscara para fingir ser alguém, ela veste uma máscara para ser alguém muito específico dentro daquele universo. E em Mirrormask a coisa fica mais legal por mostrar que não é só o uso de uma simples máscara que define os papéis de Helena naquele mundo. São as roupas que usa, o penteado do cabelo e até as lentes negras quando assume de vez o papel de filha da rainha. A partir daquele momento, mostrado na bela “transformação” com as mulheres-relógio, ela não é mais a Helena Campbell do começo do filme, ela agora é alguém diferente, tão diferente que demora um tempo para voltar como era antes. Ué, talvez ela até seja outra “pessoa“! Quando Helena encontra a “máscara de espelho“, aí ela se toca e sai daquele papel… Com relação ao mundo real, bem, primeiro que dificilmente existem essas máscaras de espelho, rs. Agora, essa é a minha interpretação… já o que pensa Neil Gaiman, não sei…

      Entendo que é um tema complicado e estudado não só pela Antropologia, mas por várias outras ciências. E por que coloquei tudo em aspas? Bem, está tudo entre aspas por estes termos que usei aqui ainda são problemáticos, não definindo muito bem essa nossa experiência divertida de viver em sociedade. Contudo, apesar de ser difícil de entender agora, certamente estas idéias nos ajudam a pensar tudo de maneira… diferente. Espero o seu comentário para continuar estas divagações.

      Victor Hugo

      Agradeço ao meu amigo Alexandre pela discussão das máscaras de Helena, rs.

  3. Olá Vitor Hugo,
    Muito obrigada pela sua resposta,achei muito interessante e você me ajudou bastante.
    É muito bom ter contato com pessoas inteligentes e que gostam de ajudar.

  4. Estava eu aqui esperando o momento de escrever sobre MirrorMask e resolvi dar uma olhada por aí nas coisas escritas a respeito desse filme!

    Eis que me deparo com essa sequência de rewiew/antropológica agora nem sei mais se escrevo (provavelmente vou por que sou assim mesmo), mas certamente não será tão rico como esse post aqui.

    Parabéns Lindo Post!

    Bjocas

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